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O livro História do PT, de Lincoln Secco, é uma bem vinda contribuição não só para a historiografia contemporânea brasileira, mas para toda a reflexão política sobre o significado do mais importante partido brasileiro nas últimas três décadas.
Um bom historiador é como um cineasta, ele precisa contar uma história no seu desenvolvimento, não basta uma fotografia de um momento, mas é preciso ver os personagens e o cenário no seu dinamismo. Nisso Lincoln Secco se revela um excelente e ágil narrador, incorporando a um retrospecto minucioso de todos os encontros, congressos, eleições internas e participação nas eleições nacionais, uma série de depoimentos com grande riqueza e amplitude, construindo a história do partido num quadro mais geral da história do país. Um problema, entretanto, é o pouco peso dado ao desfecho. O segundo governo Lula é pouco analisado. E a interpretação teórica sobre o sentido histórico do PT também permanece, a meu ver, inconclusa.
Outra virtude do texto, além do estilo elegante, é sua concisão. Optar por uma obra sintética, entretanto, tem sempre o preço de ter de sacrificar o tratamento mais exaustivo. Mais à frente mencionarei as lacunas assim como alguns erros que considero ter o livro.
Seu maior mérito, contudo, é certamente sair de uma historiografia puramente descritiva e avançar considerações de análise teórica política e sociológica. Nesse sentido, há uma tese forte de fundo que consiste na afirmação de que o PT cumpriu no Brasil de forma concentrada todas as três fases que caracterizaram os partidos social-democratas na Europa: uma primeira apoiada nas lutas operárias, com forte conteúdo ideológico socialista e de oposição extra-parlamentar privilegiando a ação direta, especialmente a grevista. Essa fase foi da fundação em 1980 até 1989.
Uma segunda fase é a da consolidação como partido institucional, sendo a principal força de oposição dentro do parlamento e com grande peso de deputados e de profissionais políticos. Ela ocorre durante uma década de fraca mobilização social, durante os dois governos FHC, entre 1990 e 2002.
A terceira é da ascensão ao poder, indo de 2002 até hoje, com a descaracterização do ideário socialista fundador em prol de um pragmatismo que leva a alianças com velhos adversários e a adoção de métodos de corrupção, além de uma política eleitoralmente bem sucedida de assistência social junto com uma aliança estratégica com o setor financeiro e o agronegócio.
Secco identifica essa transformação até mesmo pela quantificação das referências ao socialismo nos documentos oficiais dos encontros petistas (que vão de 126 no I congresso em 1991 à apenas uma no IV Congresso de 2010). Muito mais importante do que os documentos, no entanto são os atos. E o livro não cede à tentação mais comum em muitos outros ensaios históricos sobre o PT que é uma tendência hagiográfica. Os atos da primeira fase são muito distintos dos da última e Secco não deixa de exercer o olhar crítico sobre as mudanças e metamorfoses petistas, mas a fase do PT no governo é menos analisada e a sua interpretação é mais hesitante.
Secco é taxativo ao afirmar que Lula “ficou tão aquém de suas tarefas históricas” (p.202), porque a “esquerda ganhou parte do poder, mas perdeu a hegemonia para os ideólogos dos mercados financeiros” (p.202) embora considere também ter havido “uma transferência de renda para os muito pobres através de programas sociais” (p.206).
Assim o lulismo é definido como uma “contraditória aliança de classes conquistada pelos valores da estabilidade social e monetária simultaneamente” (p.243). Essa aliança entre “agronegócio, rentistas, trabalhadores urbanos e rurais e os muito pobres (...) dependeu da arrecadação e da arbitragem da disputa pelo orçamento público” (p.244).
O que, entretanto, o historiador não responde é: quem mais ganhou nessa disputa? Se o PT é produto de uma “fase de mudança estrutural de um ciclo sistêmico de acumulação para outro numa etapa de esgotamento do modelo brasileiro de substituição de importações”, qual foi o seu papel real na articulação das formas de renda do capital e o Estado brasileiro na época do maior rentismo financeiro da história?
Embora bastante quantificador de dados, Secco não levou em conta os dados econômicos que mostram a magnitude da transferência de renda do Estado brasileiro para o setor financeiro na época dos governos do PT, maiores do que na época dos governos PSDB/PFL, para poder calcular o peso da balança nessa aliança abstrata entre setores contraditórios e quais os beneficiários dessa equação.
Parece haver uma hesitação do historiador em levar às suas últimas conseqüências os dados de sua própria análise. Daí uma aparente incerteza quanto à inclusão do PT na categoria de partido “social-democrata”: “o PT é diferente da social democracia clássica na origem e nos fins” (p.257). Mesmo que historicamente o PT não tivesse ingressado formalmente na social-democracia, chegando mesmo em sua formação inicial a repudiá-la, sua trajetória repete as fases históricas dos partidos socialistas europeus. Na fase final, o seu “aburguesamento inexorável” também pode ser identificado no PT. Mesmo que se destaque diferenças com a social-democracia européia, o PT também “se tornou finalmente um partido de governo e sobrepôs à sua identidade socialista e nacionalista uma tendência tecnocrata eivada dos vícios da política tradicional brasileira” (p.259). A ironia brasileira é que o grande partido social-democrata no país não foi o que levou essa sigla ao próprio nome (o PSDB), mas o PT, que continuou, no essencial, o mesmo programa econômico dos governos FHC, o que Secco reconhece, mesmo que de forma atenuada, ao escrever que “Lula não rompeu totalmente com a política econômica de FHC” (p.205). No Brasil, “as tarefas históricas da burguesia (reforma agrária, democracia, educação pública etc.) foram relegadas e caíram no colo do PT tornando-se exigências socialistas como bem notava Florestan Fernandes.” (p.260). A questão que Secco não conclui é que essas tarefas que “lhe caíram ao colo” não foram ainda cumpridas!
O mal chamado “aggiornamento” petista, ou nas palavras de Gramsci o seu “transformismo” foi consagrado com a Carta aos Brasileiros de junho de 2002. Neste processo de “transformismo” o PT aceitou como que um pacto fáustico e, em troca da chegada e manutenção do poder, vendeu a alma ao demônio do grande capital e das velhas oligarquias tradicionais. Processo idêntico, na sua essência, ao cumprido pelos partidos socialistas europeus desde o início do século XX (a política atual do PSOE na Espanha e do PASOK na Grécia, além da participação dos partidos das ex-ditaduras governantes no Egito e na Tunísia na social democracia internacional são a expressão mais atual desse fenômeno) que levaram, entretanto, muito mais tempo para essa evolução. A Carta aos Brasileiros foi assim mais uma Carta aos banqueiros assinalando a guinada histórica do PT. Um partido que nunca tivera o marxismo como teoria não precisou como a social-democracia alemã de um congresso de Bad Godsberg para renegá-lo.
Essa objetividade na análise, mas certa recusa em tirar as lições, parece contaminar o texto de Secco com uma condescendência com o PT que o leva a fazer afirmações categóricas como de que o escândalo do “mensalão” “não se tratou da corrupção tradicional da política brasileira, salvo casos isolados como um dirigente que recebeu um automóvel usado de um empresário” (p.227), ou de que no PT não houve enriquecimento pessoal de lideranças partidárias (p.106), ou ainda de que na eleição de 2002, 80,4% dos deputados petistas tinham baixo patrimônio (p.248). Fazer estas afirmações e ao mesmo tempo não mencionar casos como os de Antonio Palocci, de José Dirceu, de Luís Gushiken cujos patrimônios cresceram com “consultorias” empresariais é pouco rigoroso.
Mesmo identificando o declínio da militância do PT substituída por profissionais e a burocratização a serviço dos parlamentares e do governo, o autor parece continuar a ver um setor resistente no interior do partido ao seu próprio curso histórico como um puro wishful thinking: “no período em que a sombra da corrupção abateu-se sobre o partido muita gente resgatou a referência socialista” (p.250). Quem são esses socialistas resistentes não fica claro, pois mesmo quando no passado a esquerda do partido obteve maioria na comissão executiva quem continuou decidindo a linha foi Lula e os parlamentares e ocupantes de cargos executivos independentemente da direção partidária.
Essa pouca disposição em analisar mais a fundo o caráter social da burocratização e aburguesamento do PT não permite que Lincoln Secco dialogue com os críticos de esquerda do PT, tais como Francisco de Oliveira, que com a metáfora do Ornitorrinco analisa esse híbrido em que se constitui a formação social brasileira emblematizada pela aliança entre sindicalistas ocupantes de postos de gestão financeira de fundos de pensão e banqueiros, numa visão muito menos edulcorada do petismo do que Lincoln. A única referência a Francisco de Oliveira é indireta e para dizer que o PT se insere em uma tradição marxista “neo-desenvolvimentista” de 1954-1964 da qual o PCB foi o elemento central (p.69). A ideia de que o governo Lula aplicou de alguma forma uma opção pelo neo-desenvolvimentismo é ainda mais esdrúxula dado o predomínio de uma política de juros altos e de um Banco Central quase independente e nas mãos do setor financeiro. A própria designação de social-democracia para o PT é imprópria, cabendo melhor social-liberalismo, como foi desenvolvido por outros autores .
O livro consegue, em geral, resumir bem a história da luta interna no PT e de seus alinhamentos de tendências, mostrando como surgiu a “articulação dos 113” como tendência majoritária em torno de Lula, embora o seu papel pessoal não seja analisado a fundo. A crise das derrotas no primeiro turno nas campanhas presidenciais de 1994 e 1998, esta última em aliança com Brizola, e a emergência da “articulação de esquerda” e de outras correntes mais à direita são relatadas, mas a natureza da relação ambígua de Lula e do seu grupo de confiança direta agindo acima do partido não é esmiuçada. O próprio fenômeno da caracterização de um crescente “lulismo” acima do petismo, especialmente no período mais recente, também não é destacado.
A perspectiva mais contemporânea do texto leva muito pouco em conta a existência de setores à esquerda do PT, todos provenientes do próprio PT, tais como o PSOL e PSTU, e arrisca até previsões sobre a conjuntura presente ao falar da convergência política das atuais centrais sindicais no apoio ao governo que “ficou para trás o tempo do novo sindicalismo” (p.247) desprezando assim as articulações sindicais combativas que vem se expressando na Conlutas e na Intersindical.
A tese de que na origem do PT a extrema-esquerda só teve peso onde “era ínfima a movimentação social” (p.51) é insustentável não só em relação ao RGS a que o trecho se refere como também a São Paulo. Sequer fica clara a importância decisiva da CS (Convergência Socialista) na defesa da formação do PT no Congresso metalúrgico de Lins, em janeiro de 1979, onde José Maria de Almeida, de Santo André, foi o defensor dessa proposta. As três organizações trotskistas (DS, CS, OSI) foram importantes e isso é avaliado pelo próprio autor mais a frente em que afirma que “em muitas cidades o partido só pôde aparecer devido à extrema-esquerda” (p.56). Quando trata da “proletarização forçada” de militantes provenientes do meio estudantil, no entanto, o uso da adjetivação “forçada” é incompreensível. Ninguém era forçado a uma tarefa dessas!
Também fica margem de equívoco quando escreve: “As iniciativas pela derrubada efetiva do presidente ou pela cassação do registro do PT ficaram restritas a políticos isolados ou grupos marginais, como o PSTU e PSOL que ensaiaram passeatas contra o PT.” (p.228) O PSTU e PSOL jamais fizeram qualquer iniciativa pela “cassação do registro do PT” como pode depreender-se desse parágrafo.
Outra impropriedade é chamar esses grupos de “marginais”. Seis milhões meio de votos (6,85% dos válidos) em Heloísa Helena em 2006 ou mesmo algumas das maiores votações parlamentares em São Paulo e Rio de Janeiro em 2010, além do peso social e sindical não fazem desses partidos forças apenas “marginais” na política brasileira.
Vários outros aspectos interessantes são analisados no livro. Um deles é o contraste do PT com o PCB como os dois maiores partidos da classe operária que já existiram no Brasil em distintos momentos, mostrando como o partido comunista foi de uma estrutura de militância, de imprensa e editorial proporcionalmente maior que a do PT. Apesar de muita retórica sobre o papel dos núcleos, o que prevaleceu no PT foi uma estrutura eleitoral e sua natureza de massas se deveu à influência eleitoral muito mais do que a de uma militância orgânica.
Lincoln Secco termina sua História do PT afirmando que o contexto internacional de uma nova fase no ciclo de acumulação capitalista coincidindo com uma década de recuo nos movimentos sociais e na influência ideológica do socialismo após o colapso da URSS levou a que o PT combinasse “vitória política com impotência social”. Isso não corroeu o apoio eleitoral porque “Lula apareceu como o único governante que estendeu o pagamento de benefícios sociais” (p.233) levando ao realinhamento eleitoral de 2006 observado por André Singer em que os setores mais pobres do eleitorado se inclinaram para o PT, apesar da perda de apoio em setores médios e de maior nível educacional.
A história do PT é um assunto em curso. Seu desfecho, desdobramento e conseqüências ainda estão em aberto. É difícil num tema cuja ação ainda flui tirar conclusões totalmente acabadas, mas deixar de fazê-lo também é inaceitável. Lincoln Secco percorreu esse duro dilema com êxito, produzindo uma obra que certamente já é referência indispensável para os que se interessam pelo PT, que obviamente não são apenas os estudiosos, mas toda a sociedade brasileira e mundial, e que traz, além do texto, uma cronologia, um glossário, um historiograma das principais tendências e outros apêndices úteis como instrumentos de pesquisa.
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