10 novembro 2015

Pepe' Mujica: de guerrilheiro a administrador dos negócios capitalistas"

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A figura distorcida de Mujica
Sua imagem desalinhada, seu discurso "folclórico" e concessões parciais que ocorreram durante seu governo (regulação da maconha, regulamentação do aborto e casamento gay), com a sua posição como um defensor da "paz" expressa nas negociações com as FARC, são elementos que poderiam sugerir que este ex-guerrilheiro octogenário foi uma mudança substancial na política uruguaia, e pode ser considerado um exemplo para as novas gerações de ativistas políticos.
Aquele que foi o "presidente mais pobre do mundo" e viajou em um velho Fusca às sessões do Parlamento construiu uma imagem de "forasteiro" e completamente longe da "velha política". No entanto, como diz o ditado, "Nem tudo que reluz é ouro."
"Antes que eu queria mudar o mundo, agora o caminho para casa." Assim se chamava uma entrevista com Mujica como presidente em 2013 e onde se dava conta de uma ideologia "do possível" em contraste com o seu passado de luta armada, numa trajetória análoga a que vemos em Dilma Rousseff do PT: da guerrilha à defesa irrestrita do Estado burguês.
Mujica, o guerrilheiro
"Pepe" Mujica (agora com 80 anos) começou a militar na juventude do Partido Nacional (um dos partidos tradicionais do Uruguai) desde o início dos anos 60 à influência de grandes processos revolucionários como a Revolução Cubana (1959). Virou-se para posições de esquerda, fazendo parte da formação do Movimento-Tupamaros de Libertação Nacional (MLN-T), e expressando a radicalização de um setor importante das classes médias.
Em um momento histórico de guerra fria e caracterizada pela ascensão de guerra de guerrilha baseado no campesinato, o MLN-T renunciou a se tornar uma guerrilha urbana, na ausência de sujeito social rural. Em seus princípios básicos, o MLN-T reivindicava "a luta por um governo popular e antiimperialista como uma ferramenta para a libertação nacional e o socialismo". Ou seja, o MLN-T não colocava como perspectiva imediata a expropriação da burguesia, mas alcançar o poder do Estado pela via armada para desenvolver demandas democráticas em primeira instância, como a reforma agrária. Além dessa estratégia se mostrar equivocada porque não buscava uma ruptura com a burguesia nacional, seria impulsionada pelo MLN-T fora do movimento real das massas e da classe trabalhadora.
Entre 1968 e 1973, o Uruguai experimentou um ascenso operário e popular, culminando com o golpe cívico-militar em 26 de junho de 1973 que foi enfrentado por uma greve geral de 15 dias liderada pelo Partido Comunista. Em 1973, o MLN-T não desempenhou nenhum papel, uma vez que sua direção estava na prisão e o aparato armado tinha sido desmantelado.
Mujica ficará na prisão por quase 13 anos suportando a tortura e a humilhação por parte do regime ditatorial até a promulgação da Lei de Anistia em 1985 pelo governo do colorado Julio Maria Sanguinetti. Em seus anos na prisão começam seus balanços e debates a sobre teoria e a estratégia política. Um setor argumentou que o erro do MLN-T foi não ter tido mais influência sobre a classe trabalhadora; outro setor começou a levantar a necessidade de se adaptar ao sistema democrático burguês. Este último setor foi liderado por Mujica e Fernandez Huidobro (entre outros), agora ministro da Defesa.
Da luta armada ao Parlamento
Em 1989 por proposta do MLN-T se funda o Movimento de Participação Popular (MPP), um espaço mais amplo adaptado para aos novos tempos eleitorais, que vai progressivamente moderar seu discurso até convergir com os setores que romperam com os partidos tradicionais em Montevidéu e no interior do país. Ingressa formalmente na Frente Ampla e em 1994 Mujica é eleito deputado, assumindo sua bancada em 1995.
Naqueles anos, se alternavam os governos dos brancos e dos colorados que promoveram reformas neoliberais enfrentadas pelos trabalhadores. Em 1999, quando já se começava a esgotar a paciência com o neoliberalismo, Jorge Batlle Vázquez consegue vencer, entrando na presidência. Mujica foi eleito senador, e o MPP será um dos mais votados para a disputa interna da Frente Ampla (FA).
Em 2002 o Uruguai viveria a mais importante crise econômica em muitos anos e a agitação popular se fazia evidente. É desde aí que a FA, através de sua hegemonia nos sindicatos e organizações sociais, outorga governabilidade à Jorge Batlle, para evitar um processo tal como vivido em dezembro de 2001 na Argentina. Com a eleição de Lula, a FA através de seus líderes Astori, Mujica e Vázquez, apontaria para conter a agitação e optar por uma saída de “mudança com continuidade” através de eleições em 2005.
Para a decepção de milhares de membros da Frente Ampla com a timidez do primeiro mandato de Tabaré Vázquez, e a possibilidade iminente de que o único candidato da coalizão seja Astori, o MPP e Partido Comunista formaram uma aliança que deram os votos necessários à Mujica no Congresso da FA para permitir a candidatura presidencial oficial. Era a suposta candidatura para a "virada à esquerda".
Mujica no poder: um político simpático com os empresários
O triunfo em 2009 sobre o noventista presidente Luis Alberto Lacalle Herrera, do Partido Nacional, pôs Mujica à frente do governo no Estado uruguaio. Mas ilusões em um governo mais à esquerda que Tabaré Vázquez logo se dissipou. Com uma situação econômica internacional incerta e as possibilidades de fazer sentir seus primeiros impactos na região, a margem de manobra econômica encurta para a FA.
Seu início foi "a pleno vapor" com um discurso que atacava os funcionários públicos, a quem taxou de "privilegiados". É com este pensamento que Mujica, em meio à greve dos professores uruguaios em 2011 contra os baixíssimos salários, “Pepe” sugeriu que “os professores deveriam propor-se a trabalhar mais”. “Sim, ganham pouco, com 17 mil pesos não dá para viver, mas são quatro horas em 180 dias do ano. Estão lutando para arredondar o salário, mas talvez deveriam propor-se a trabalhar um pouco mais,” disse Mujica, pouco antes de reprimir a greve nas ruas.
É uma tarefa fundamental para a FA em seu segundo governo cumprir a "Reforma do Estado", ansiada pelo empresariado e pelo regime. Ela consistia em um conjunto de leis que tentam flexibilizar o trabalho e abrir a privatização de empresas públicas, tais como a direita tentou fazer na década de 90, mas pode alcançar apenas parcialmente. Embora não se possa falar do ponto de vista estrutural que se fez essa reforma, no governo de Mujica o novo estatuto do funcionário público, que ataca muitas de suas conquistas históricas, tais como tempo de trabalho de seis horas, foi aprovada.
Em 2011, seguindo essa linha e contra uma campanha ativa por parte do sindicato ferroviário se aprovou a Lei de Participação Público-Privada, que estabelece o marco legal para a privatização de empresas públicas. A partir desta lei, em 2015, os trens de carga começam a operar em órbita privada.
Em um país onde 70% da terra é controlada por empresas estrangeiras, longe de ter um discurso “nacionalista” ou uma retórica antiimperialista (que pelo menos o aproximasse de outros governos pósneoliberais como "chavismo"), Mujica percorreu o mundo dizendo aos empresários as grandes vantagens de investir no Uruguai, nas suas zonas francas absolutamente livres de imposto. O modelo econômico da Frente Ampla se baseou na alta penetração do capital estrangeiro em áreas de produção e de serviços, que como contrapartida deixará 60% da força de trabalho ativa com salários mais baixos do que os 15.000 pesos, quando a renda mínia familiar exigida era de 60.000 pesos.
Em matéria de Direitos Humanos, Mujica não foi menos “sincero” em seu giro à direita. Ele nomeou como ministro da Defesa Eleuterio Fernández Huidobro, outro velho tupamaro que se encarregou de insultar as organizações de direitos humanos e bloquear investigações e inquéritos de militares envolvidos em crimes de lesa-humanidade durante a última ditadura (1973-1985). Ensaiando suas tentativas de "reflexão profunda", "Pepe" chamou repetidamente a "não sobrecarregar os militares de hoje com as culpas do passado", chegando a dizer que não queria "velhinhos presos", referindo-se aos militares presos em cárcere VIP no Arena Domingo.
Tanto na regulação da maconha como o aborto, sempre colocou como condição do exercício um profundo controle estatal ("Registro do usuário" no caso da maconha, a regulamentação do aborto sob tutela do Estado, mantendo o aborto como delito no Código Penal). Em última análise, para Mujica as liberdades democráticas devem ser arregimentadas pela burocracia estatal, contrariando qualquer princípio minimamente liberal.
Mujica no Brasil
Enquanto ainda mantém altos níveis de popularidade, Mujica é a expressão de uma parte da classe política de extração mais "popular" (isto pode incluir Evo Morales e Lula), e acaba sendo aceitável para os setores mais conservadores e poderosos para exercer a administração do aparelho do Estado.
No Brasil, Mujica está se convertendo num exímio defensor do governo do PT, Lula e Dilma. Em pleno “fim de ciclo” dos governos “progresistas” a América Latina, que abrem as portas à direita como faz o governo Dilma aplicando profundos ajustes contra os trabalhadores, Mujica está em “turnê” como guarda-costas do petismo. A 26/8 o ex-presidente do Uruguai veio ao Brasil a convite da Federação de Câmaras de Comércio e Indústria da América do Sul (Federasur), animando o coro da campanha de distintos setores governistas “contra o golpismo” numa UERJ lotada. Logo depois reuniu-se com Lula em São Bernardo do Campo, centro de algumas das principais industrias automotrizes (Ford, Volkswagen, Mercedes-Benz) que estão demitindo e rebaixando os salarios dos trabalhadores metalúrgicos. Como se não bastasse, participou do 12º Congresso da CUT, que aprovou o Plano de Proteção ao Emprego (PPE, que reduz a jornada de trabalho reduzindo os salarios dos trabalhadores e os encargos da empresa), agradecendo o convite “em solidariedade à CUT e ao meu amigo Lula”, e chamando a defesa da “democracia”, mote que o petismo vem usando para mascarar o fato de que é o principal agente dos ajustes junto com a direita.
Estes acordos com os governos “posneoliberais” se estendem pela América Latina, como a proposta de Mujica para que a Bolívia tenha acesso ao Oceano Atlântico através do território uruguaio, ou a participação do ex-presidente uruguaio nas marchas em defesa dogoverno de Maduro na Venezuela. Não é preciso lembrar os duros ajustes e a desvalorização da moeda que o governo chavista vem aplicando sobre a população trabalhadora em nome da “batalha contra a direita”, ou os acordos de Evo Morales com o empresariado nacional contra as demandas indígenas e as mobilizações operárias, como a greve dos mineiros da COB em 2013.
A estratégia de conciliação de classes de Mujica e da Frente Ampla uruguaia tem hoje o valor farsesco de, após gerenciar os negócios capitalistas no Uruguai, revestir de “humanidade” o direitismo dos ajustes na América Latina.
Fonte: http://www.esquerdadiario.com.br/