Valério Arcary, de São Paulo*
De repente, tudo mudou. Nas manifestações de ontem, segunda, 17
de junho, aconteceu algo excepcional, algo de inusitado e heróico, que
remete ao extraordinário, ao imprevisto, ao grandioso. Bonita,
magnífica, majestosa, em São Paulo, no Rio de Janeiro, e pelo Brasil
afora, a juventude saiu às ruas e fez tremer a Avenida Paulista e a Rio
Branco, fez tremer os banqueiros, fazendeiros, empreiteiros, fez tremer
os comandos das Polícias Militares, e os governadores, prefeitos,
deputados, até o último dos vereadores. Toda a ordem econômica, social e
política que preserva o Brasil, um dos países mais injustos do mundo,
ontem, tremeu. Eles não podiam ir dormir. Tinham que procurar uma
explicação. Porque eles precisavam entender porque são desprezados.
Foi surpreendente, mas sabíamos que teria que acontecer, que estava
no horizonte, pelo que esperamos por vinte anos; esperamos, alguns, uma
vida inteira. O que tinha sido, até então, em quatro passeatas corajosas
em São Paulo, um protesto contra o aumento das passagens, se agigantou
em manifestação política nacional e, de repente, tudo mudou. O
capitalismo brasileiro, que estava comemorando as suas grandes obras, os
seus estádios, suas hidroelétricas, foi para a cama de olhos
arregalados, assustados.
Mudou porque esta geração da juventude, a mais escolarizada da
história do Brasil, os desaprova, os condena, os odeia. Pior e mais
importante que tudo, temem que a juventude esteja somente abrindo a
porta para a entrada em cena da classe trabalhadora. Se os milhões de
assalariados, que fazem o Brasil ser um dos países periféricos com um
dos maiores proletariados do mundo, entrarem na briga, o que vai estar
em disputa não será somente a anulação do aumento das passagens. Esta
aliança da classe trabalhadora com a juventude é a maior força social
que existe. Foi assim nas Diretas. Foi assim no Fora Collor.
Por que mudou? Mudou porque éramos muitos, éramos centenas de
milhares, e isso faz toda a diferença. Mudou porque eram milhões que nos
apoiavam. Mudou porque aqueles que não saíram nas ruas, ontem, virão
nas próximas. Mudou porque nossos inimigos se calaram, silenciaram,
roendo as unhas. Mudou porque aquilo que é justo merece vencer. A
alegria tomou conta das ruas e o medo tomou conta dos palácios. Eles
gemeram, e nós cantamos. Andamos, gritamos e cantamos, com deve ser.
Aliás, como andamos em São Paulo! Muitos cartazes maravilhosos:
"se
o povo acordar, eles não dormem! Não adianta atirar, as ideias são à
prova de balas! Não é por centavos, é por direitos! Põe a tarifa na
conta da Fifa! Verás que um filho teu não foge à luta! Se seu filho
adoecer, leve-o ao estádio! Ô fardado, você também é explorado!"
Mas, se apareceu o que existe de mais generoso, valente e solidário
no coração da juventude, apareceu, também, o que existe de ingênuo,
confuso e até reacionário. Não foi tudo progressivo. Apareceram jovens
embriagados de nacionalismo, embrulhados na bandeira nacional. Cantando:
sou brasileiro com muito orgulho e muito amor. O nacionalismo é uma
ideologia política perigosa. Só é positivo quando defende o Brasil do
imperialismo. Acontece que não parecia que os que cantavam o hino
estavam de acordo em exigir a anulação dos leilões de privatização,
portanto, de desnacionalização do petróleo e do pré-sal.
Alguns destes jovens fizeram ainda pior. Avançaram sobre militantes
de esquerda e suas bandeiras. Atacaram as bandeiras do PSOL, do PCB e do
PSTU. Por sorte, não aconteceu uma tragédia: porque a militância da
esquerda tinha o direito e a disposição de defender suas bandeiras, a
qualquer custo, e poderia ter se precipitado uma pancadaria séria, com
feridos.
Gritar sem violência não é o mesmo que gritar sem partidos. Quando
gritamos juntos sem violência estamos denunciando a presença de
provocadores infiltrados da polícia que querem oferecer, conscientemente
ou não, um pretexto para a repressão. Não estamos condenando o direito
legítimo à autodefesa, um direito inalienável, que qualquer um aprendeu
no jardim de infância. Estamos tentando impedir que nossas manifestações
sejam destruídas pela repressão, e que esta repressão consiga ganhar
apoio do povo contra a juventude. As televisões usaram e abusaram de
imagens de uma estação de metro depredada. O povo que trabalha é contra a
destruição do metro. Foi isso que Alckmin tentou fazer, por quatro
vezes, manipular a população acusando a juventude de vandalismo, e foi
derrotado.
Gritar sem partidos, contra a esquerda, é muito diferente. Que uma
parcela de juventude ingênua tenha profunda repugnância pela política,
que associe toda a esquerda ao PT, o PT à corrupção, e o Haddad ao
aumento, embora seja superficial, portanto, meia verdade e meia mentira,
é compreensível. Que grupos reacionários, nacionalistas, que estão
contra o governo Dilma pela ultradireita, que odeiam a esquerda porque
ela representa o projeto coletivista e igualitarista da classe operária,
aproveitem da confusão de uma manifestação com muitos milhares para
expressar seu ódio de classe, insuflados por Jabor da Rede Globo, é
previsível. Que núcleos de inspiração anarquistas ainda insistam na
divisão do movimento, querendo impor pela força dos gritos sua
ideologia, é antidemocrático, divisionista, portanto, lamentável.
Mas o que aconteceu em São Paulo, no Rio de Janeiro e Salvador foi
diferente, e muito, muito mais grave. Foi parecido com o Cairo, onde a
Irmandade Muçulmana tenta impedir a esquerda de se apresentar
publicamente.
O que aconteceu foi que jovens, supostamente de inspiração
anarquista, de rosto coberto, mascarados, alimentando a ilusão de que a
intimidação física é o bastante para vencer na luta política, foram a
linha de frente de um ataque covarde, quando estavam, acidentalmente, em
maioria, e tentaram derrubar as bandeiras vermelhas. Não conseguiram
fazê-lo, nem no Rio, nem em São Paulo, mas conseguiram em Salvador.
As lutas são apartidárias, mas não são monolíticas, são plurais.
Marchamos todos juntos, não importa a ideologia, pelas reivindicações
comuns que nos unem. Cada um abraça sua ideologia, seu programa e, se
quiser, um partido. Sim, porque na vida, é preciso, mais cedo ou mais
tarde, tomar partido. Mas, dentro do movimento ninguém pode impedir os
outros de apresentar sua identidade, ou de expressar sua posição. O
antipartidarismo, mais grave quando se dirige contra a esquerda
socialista, é uma ideologia reacionária e tem nome: chama-se
anticomunismo. Foi ela que envenenou o Brasil para justificar o golpe de
1964 e vinte anos de ditadura.
Não deixem baixar as bandeiras vermelhas. Foram os melhores filhos do povo que derramaram seu sangue pela defesa delas.
*Artigo originalmente publicado no Blog Convergência