24 fevereiro 2014

As cinco crises do PT!


Valerio Arcary
“Vinho e riqueza mudam o homem mais sóbrio.” (Sabedoria popular portuguesa.)
Tudo que existe se transforma. Nenhuma mudança, contudo, ocorre sem uma crise. Uma crise se abre quando a acumulação quantitativa de conflitos, até então geridos de forma rotineira, porque a força de inércia pode ser muito poderosa, impõe a necessidade de um giro. Decisões que foram adiadas, indefinidamente, precisam então ser enfrentadas. A história de organizações políticas só pode ser compreendida, portanto, com a análise de como enfrentaram suas crises. Este esforço de periodização é inescapável para atribuir sentido à interpretação de como o petismo se transfigurou em lulismo.
No seu processo de transformações, o PT enfrentou muitas crises, mas foram quatro as que marcaram sua história até junho de 2013. A dinâmica política de sua evolução não foi linear. O critério para definir quais entre as crises foram as mais importantes será sempre controverso. O que importa, no entanto, não é se os que viveram o processo compreenderam a gravidade da mudança que aconteceu, mas se o desenvolvimento futuro do Partido confirmou que ela foi decisiva.
Eis a hipótese deste artigo: uma crise é significativa quando um partido sai dela diferente daquilo que era. Nos anos oitenta, por exemplo, quando a situação política evoluía à esquerda pela mobilização mais ativa dos trabalhadores e da juventude, o PT teve a primeira ruptura, pela direita, mas foi indolor, tanto na vanguarda mais orgânica, quanto na área de influência eleitoral.[1]
A primeira crise (1988)
A primeira grande crise veio com a eleição de Luísa Erundina para a Prefeitura de São Paulo. Confirmou-se a terrível dialética de como as vitórias podem se transformar em derrotas. O posicionamento de um partido em relação ao regime político no qual está convocado a lutar é uma das suas definições mais essenciais. Trata-se da atitude diante do Estado. A questão central colocada era a relação com o regime democrático-eleitoral: aceitar ou não os limites legais da nova constitucionalidade?
O processo de adaptação político-social era nebuloso para a maioria da vanguarda ativista que tinha referência no PT, porém, como a evolução futura confirmou, dramaticamente, já era irreversível. O que não impediu que, ainda durante alguns anos, uma parcela majoritária da esquerda petista considerasse que o PT, e mesmo de sua direção, seria um “partido em disputa” para o projeto da revolução brasileira.
A atitude da bancada do PT em relação à Constituição de 1988 foi simbólica deste período. O PT votou contra a Constituição, mas assinou o documento, portanto, assumiu, publicamente, o respeito pela legitimidade do novo regime.[2] A maioria da esquerda petista desejou ignorar o significado desta assinatura, mas a direção do PT sabia muito bem que estava sinalizando para a classe dominante um compromisso com a ordem. A burguesia brasileira compreendeu o gesto. Não por acaso, a direção do PSDB, liderada por Mario Covas, unanimemente, declarou o apoio a Lula contra Collor no segundo turno em 1989. Assim como Brizola.
Erundina e outros prefeitos petistas, como o de Diadema no ABC, na região metropolitana paulista, se viram diante do dilema de ocupações de terrenos públicos e privados pelos movimentos de moradia, e de greves de funcionários públicos, e de trabalhadores de estatais, como a CMTC, empresa pública de transportes. Apelaram à repressão, uns mais outros menos, e houve episódios até de presos e feridos. Não houve rupturas no partido, mas as placas tectônicas do PT se moveram. O PT pagou a dívida pública dos municípios, escrupulosamente, e não hesitou em convocar a PM (Polícia Militar) contra a luta operária e popular.
O que obscurecia a mudança política profunda era que, embora o PT tivesse deixado de ser oposição ao regime democrático, era não só oposição ao governo Sarney, mas uma oposição intransigente.
A segunda crise (1992)
No início dos anos 1990, quando a situação política evoluía à direita, e as pressões burguesas pela estabilidade do regime democrático eram mais intensas, a direção do PT convocou o 1º Congresso e decidiu expulsar a Convergência Socialista, uma corrente trotskista que constituiu, após uma unificação com outras organizações marxistas, o PSTU.[3] Foi a segunda grande crise. Dali para frente, as tendências de esquerda que ainda resistiam no PT ficaram sabendo qual seria o seu destino, se desafiassem a direção. Esta crise não teve repercussão eleitoral, mas deixou uma ferida incurável: a ala revolucionária tinha sido eliminada, e as reações defensivas foram declaratórias.
Paradoxalmente, após o impulso do Fora Collor, a corrente majoritária do PT — que tinha ido muito longe no seu giro à direita no 1º Congresso de 1991 — se dividiu, originando a Articulação de Esquerda. Esta corrente, unida às tendências marxistas DS (Democracia Socialista) e Força Socialista, entre outras, obteve uma vitória no Encontro Nacional do PT em 1993. A reação, no entanto, foi um fogo de palha e se revelou efêmera. No Encontro Nacional de 1995, na seqüência da segunda derrota presidencial de Lula em 1994, a Articulação, liderada por Zé Dirceu, recuperou a maioria, em aliança com a tendência Nova Esquerda, liderada por José Genoíno e Tarso Genro.[4]
A ilusão de um partido em disputa desmoronou, e a inflexão da situação política após a vitória de FHC e a derrota da greve petroleira em 1995, foram o bastante para que a luta interna no PT se transformasse num assunto exclusivo de profissionais políticos. O partido de militantes abnegados tinha deixado de existir.
A terceira crise (2003)
Em 1999, a direção do PT, depois da terceira derrota eleitoral em 1998, realizou mais uma inflexão à direita: impôs um veto à campanha Fora FHC que a CUT e o MST vinham construindo, com o apoio da esquerda interna e externa ao PT, e que tinha realizado em Brasília um ato com cem mil ativistas.
A campanha pelo Fora FHC de 1999 tentava mimetizar o que tinha sido a campanha Fora Collorem 1992, e ameaçava crescer em um contexto de intenso mal estar provocado pela maxidesvalorização do real no primeiro mês do segundo mandato de FHC. O posicionamento inflexível da direção do PT – Zé Dirceu condicionou a sua eleição à presidência do PT à derrota da moção pelo Fora FHC – demonstrou ao governo Fernando Henrique a disposição de bloquear qualquer movimento social.
Coerente com a decisão de comprovar o seu compromisso com a governabilidade, em julho de 2002, a direção do PT articulou um Manifesto no lançamento da quarta candidatura de Lula à presidência, desta vez tendo como vice Zé Alencar, um dos maiores empresários do setor têxtil, e senador por Minas Gerais. Este documento declarava com todas as letras a decisão de honrar o pagamento da dívida pública, interna e externa.
Finalmente, em 2003, depois da eleição de Lula, a direção do PT não hesitou em expulsar Heloísa Helena e os deputados que vieram a formar o PSOL, com a acusação, novamente, de indisciplina, por terem se recusado a votar no congresso a Reforma da Previdência.[5]
Foi a terceira grande crise. Ficou comprovado que a mão da direção do PT não iria tremer no seu giro à direita. A classe dominante brasileira compreendeu o significado deste gesto.. O mesmo não pode ser dito das correntes de esquerda que, inspiradas formalmente no marxismo, decidiram acatar a decisão. Aqueles que então ainda permaneceram no PT, dentro ou fora do governo, passaram a ser uma sombra, ou um cadáver insepulto, porque perderam o que tinham de identidade própria.
A quarta crise
Foi, porém, em 2005, que o PT atravessou a mais séria crise de sua história. Uma parcela do núcleo duro de sua direção foi decapitada, politicamente, pela crise aberta pelas denúncias do mensalão. Apesar de indisfarçável satisfação das frações majoritárias da classe dominante com o governo Lula desde o primeiro mandato, a oportunidade aberta pela crise do mensalão precipitou uma ofensiva política burguesa no Congresso Nacional e na mídia, com algum eco nas ruas, nas fábricas e nas universidades, que fez Lula tremer no Palácio do Planalto.
O mensalão obrigou o PT a sacrificar Zé Dirceu e dezenas de líderes, e deixou o partido desmoralizado entre os setores mais críticos do ativismo operário e popular, em boa parte da vanguarda estudantil mais lutadora, e nos meios da intelectualidade de esquerda mais honesta.
Depois de oito anos no poder a condição de classe da direção do PT mudou (os sinais de enriquecimento rápido passaram a ser indisfarçáveis). O próprio partido mudou de natureza social. Ficou para a história o partido operário reformista. Depois de anos no poder nasceu um partido com relações orgânicas com algumas frações da burguesia brasileira.
A quinta e última crise
A quinta e última crise foi precipitada pelas Jornadas de Junho de 2013. Centenas de milhares nas ruas em mobilizações contra todos os governos, sem poupar os governos liderados pelo PT, em especial, Haddad em São Paulo, e Dilma em Brasília, puseram fim aos dez anos de estabilidade política no país. Em um mês, os índices de aprovação do governo Dilma desabaram, vertiginosamente, de quase 60% para menos de 30%. Depois de setembro, todavia, o governo liderado pelo PT se recuperou. Mas a incerteza política, e a tendência à estagnação econômica, contaminaram os humores da maioria da burguesia, que elevou o tom de suas exigências a Dilma, mesmo depois do leilão do pré-sal.
Evidentemente, não há como prever em que medida este deslocamento terá consequências eleitorais. A mobilização social esteve na história, invariavelmente, à frente da consciência política. Por outro lado, uma mudança favorável aos trabalhadores na relação de forças entre as classes pode ou não abrir o caminho para um fortalecimento da oposição de esquerda.
As grandes massas em luta pelas suas reivindicações, isto é, por uma vida melhor, têm uma compreensão muito parcial das tarefas históricas necessárias para a sua vitória. Também têm imensas dificuldades de imaginar o que seria uma mudança política-social, ou seja, a conquista do poder, e o exercício da política, por elas mesmas, sem a mediação das instituições do regime que desmorona. Vivem “fora da política” a maior parte de suas vidas e, por isso, a delegação do poder político, seja de forma coercitiva, pela usurpação violenta, seja de forma mascarada, pelo voto em alguém, é uma da forças de inércia histórica mais poderosas.
As grandes mobilizações de massas sejam elas operárias, camponesas, ou populares se colocam em movimento para derrubar o governo e o regime sem uma ideia muito clara do que seria necessário erguer no seu lugar, sem um projeto definido de ordem social e política alternativa, e sem propostas previamente acordadas de quais mudanças por realizar. A obra “destrutiva” da revolução surge aos olhos das multidões em luta, com uma urgência e uma clareza proporcionalmente inversa à dificuldade de perspectiva do que seria o novo regime. Uma pesquisa sobre as razões da participação nas manifestações revela que a grande maioria estava nas ruas em defesa de serviços públicos e gratuitos e contra a corrupção.[6]
Toda esta dinâmica, em um contexto muito semelhante ao do “que se vayan todos” da Argentina em dezembro de 2001, das mobilizações da “geração à rasca” em Portugal, dos “indignados” da Puerta de Sol em Madri, ou mesmo dos jovens desempregados na Grécia. Ninguém pode prever qual será o destino do PT a partir da ruptura da nova geração de trabalhadores, os mais instruídos da história do país, porém, precários e com salários miseráveis. A História ensina que a luta de classes pode assumir formas lentas, até que se torna vertiginosa.

[1] Três deputados federais, Bete Mendes e José Eudes, liderados por Airton Soares, romperam com o partido em 1985, porque o PT não apoiou a Aliança Democrática que elegeu, indiretamente, a chapa Tancredo/Sarney no Colégio da ditadura, na seqüência da campanha das Diretas em 1984. Saíram sozinhos, sem deslocamentos militantes, e sem maiores seqüelas na influência eleitoral, que permaneceu ascendente. A trajetória de Soares foi errática: uniu-se ao PDT (esteve nos bastidores da campanha para a presidência de Brizola em 1989), PSDB, PPS (esteve com Ciro Gomes em 1998) e, finalmente, filiou-se ao PV no apoio de Marina Silva em 2010.
[2] O discurso de Lula que sustenta a decisão de votar contra a Constituição, mas assiná-la pode ser conferido aqui: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2008/11/06/por-isso-que-pt-vota-contra-texto-da-constituicao-138367.asp.
[3]A Convergência Socialista tinha sido uma das primeiras tendências presentes desde a fundação. Zé Maria de Almeida foi um dos defensores da ideia da formação de um PT no congresso dos metalúrgicos de Lins em 1979. Em 1992, a acusação que fundamentou a expulsão da CS foi indisciplina, porque a tese que defendia a necessidade de uma campanha para tentar derrubar Collor tinha sido derrotada no 1º Congresso Nacional do PT de 1991, obtendo 30% dos delegados. A CS orientava 10% deste bloco e chegou a ter dois deputados no Congresso Nacional. A CS não aceitou a decisão e, apoiada em sua influência sindical e estudantil, que era superior à sua presença orgânica no PT – aproximadamente, 15% na CUT (Central Única dos Trabalhadores) e 20% na UNE (União Nacional dos Estudantes) – saiu às ruas pelo Fora Collor. O PSTU apresentou Zé Maria como candidato nas eleições de 1998, 2002 e 2010, mas não conseguiu representação parlamentar. Foi a principal corrente da esquerda anticapitalista impulsionadora da CSP/CONLUTAS (Central Sindical e Popular/Coordenação Nacional de Lutas) que nasceu em 2005. Sobre a CS nos anos oitenta: http://www.pstu.org.br/partido_materia.asp?id=10264&ida=58.
[4]A tendência Nova Esquerda surgiu da dissolução do PRC (Partido Revolucionário Comunista) em 1989. O PRC nasceu em 1979 de uma cisão do PCdoB (Partido Comunista do Brasil), cuja história remete à cisão sino-soviética de 1961. O PCdoB manteve referência na linha maoista defendida pela Albânia, e esteve à frente da guerrilha do Araguaia no início da década de setenta. O PRC foi parte da oposição de esquerda que lutou no interior do PT nos anos oitenta. A Nova Esquerda realizou o giro político mais estonteante do final dos anos oitenta: chegou à conclusão que o estalinismo era indissociável do leninismo e do próprio marxismo. Uma análise consistente da evolução do PRC até a Nova Esquerda e. finalmente, a formação da Democracia Radical pode ser conferidas na tese de Eurelino Coelho. (2005), Uma esquerda para o capital: crise do marxismo e mudanças nos projetos políticos dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). Tese de Doutorado. Niterói, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Ou, também, em: http://www.espacoacademico.com.br/089/89ozai.htm.
[5] O PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) nasceu em 2004 da iniciativa liderada pela senadora Heloísa Helena (uma das lideranças da DS que, entretanto, se dividiu, também, e uma maioria de 90% manteve apoio ao governo Lula), e pelos deputados federais João Batista Babá e Luciana Genro, que expressavam as posições das tendências CST (Corrente Socialista dos Trabalhadores) e MES (Movimento de Esquerda Socialista), que tinham surgido de rupturas da CS em 1992. Em 2005, depois da crise do mensalão a Força Socialista, liderada pelo deputado Ivan Valente, rompeu também com o PT e uniu-se ao PSOL. O PSOL mantém representação parlamentar com três deputados nacionais.

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