24 fevereiro 2014

As cinco crises do PT!


Valerio Arcary
“Vinho e riqueza mudam o homem mais sóbrio.” (Sabedoria popular portuguesa.)
Tudo que existe se transforma. Nenhuma mudança, contudo, ocorre sem uma crise. Uma crise se abre quando a acumulação quantitativa de conflitos, até então geridos de forma rotineira, porque a força de inércia pode ser muito poderosa, impõe a necessidade de um giro. Decisões que foram adiadas, indefinidamente, precisam então ser enfrentadas. A história de organizações políticas só pode ser compreendida, portanto, com a análise de como enfrentaram suas crises. Este esforço de periodização é inescapável para atribuir sentido à interpretação de como o petismo se transfigurou em lulismo.
No seu processo de transformações, o PT enfrentou muitas crises, mas foram quatro as que marcaram sua história até junho de 2013. A dinâmica política de sua evolução não foi linear. O critério para definir quais entre as crises foram as mais importantes será sempre controverso. O que importa, no entanto, não é se os que viveram o processo compreenderam a gravidade da mudança que aconteceu, mas se o desenvolvimento futuro do Partido confirmou que ela foi decisiva.
Eis a hipótese deste artigo: uma crise é significativa quando um partido sai dela diferente daquilo que era. Nos anos oitenta, por exemplo, quando a situação política evoluía à esquerda pela mobilização mais ativa dos trabalhadores e da juventude, o PT teve a primeira ruptura, pela direita, mas foi indolor, tanto na vanguarda mais orgânica, quanto na área de influência eleitoral.[1]
A primeira crise (1988)
A primeira grande crise veio com a eleição de Luísa Erundina para a Prefeitura de São Paulo. Confirmou-se a terrível dialética de como as vitórias podem se transformar em derrotas. O posicionamento de um partido em relação ao regime político no qual está convocado a lutar é uma das suas definições mais essenciais. Trata-se da atitude diante do Estado. A questão central colocada era a relação com o regime democrático-eleitoral: aceitar ou não os limites legais da nova constitucionalidade?
O processo de adaptação político-social era nebuloso para a maioria da vanguarda ativista que tinha referência no PT, porém, como a evolução futura confirmou, dramaticamente, já era irreversível. O que não impediu que, ainda durante alguns anos, uma parcela majoritária da esquerda petista considerasse que o PT, e mesmo de sua direção, seria um “partido em disputa” para o projeto da revolução brasileira.
A atitude da bancada do PT em relação à Constituição de 1988 foi simbólica deste período. O PT votou contra a Constituição, mas assinou o documento, portanto, assumiu, publicamente, o respeito pela legitimidade do novo regime.[2] A maioria da esquerda petista desejou ignorar o significado desta assinatura, mas a direção do PT sabia muito bem que estava sinalizando para a classe dominante um compromisso com a ordem. A burguesia brasileira compreendeu o gesto. Não por acaso, a direção do PSDB, liderada por Mario Covas, unanimemente, declarou o apoio a Lula contra Collor no segundo turno em 1989. Assim como Brizola.
Erundina e outros prefeitos petistas, como o de Diadema no ABC, na região metropolitana paulista, se viram diante do dilema de ocupações de terrenos públicos e privados pelos movimentos de moradia, e de greves de funcionários públicos, e de trabalhadores de estatais, como a CMTC, empresa pública de transportes. Apelaram à repressão, uns mais outros menos, e houve episódios até de presos e feridos. Não houve rupturas no partido, mas as placas tectônicas do PT se moveram. O PT pagou a dívida pública dos municípios, escrupulosamente, e não hesitou em convocar a PM (Polícia Militar) contra a luta operária e popular.
O que obscurecia a mudança política profunda era que, embora o PT tivesse deixado de ser oposição ao regime democrático, era não só oposição ao governo Sarney, mas uma oposição intransigente.
A segunda crise (1992)
No início dos anos 1990, quando a situação política evoluía à direita, e as pressões burguesas pela estabilidade do regime democrático eram mais intensas, a direção do PT convocou o 1º Congresso e decidiu expulsar a Convergência Socialista, uma corrente trotskista que constituiu, após uma unificação com outras organizações marxistas, o PSTU.[3] Foi a segunda grande crise. Dali para frente, as tendências de esquerda que ainda resistiam no PT ficaram sabendo qual seria o seu destino, se desafiassem a direção. Esta crise não teve repercussão eleitoral, mas deixou uma ferida incurável: a ala revolucionária tinha sido eliminada, e as reações defensivas foram declaratórias.
Paradoxalmente, após o impulso do Fora Collor, a corrente majoritária do PT — que tinha ido muito longe no seu giro à direita no 1º Congresso de 1991 — se dividiu, originando a Articulação de Esquerda. Esta corrente, unida às tendências marxistas DS (Democracia Socialista) e Força Socialista, entre outras, obteve uma vitória no Encontro Nacional do PT em 1993. A reação, no entanto, foi um fogo de palha e se revelou efêmera. No Encontro Nacional de 1995, na seqüência da segunda derrota presidencial de Lula em 1994, a Articulação, liderada por Zé Dirceu, recuperou a maioria, em aliança com a tendência Nova Esquerda, liderada por José Genoíno e Tarso Genro.[4]
A ilusão de um partido em disputa desmoronou, e a inflexão da situação política após a vitória de FHC e a derrota da greve petroleira em 1995, foram o bastante para que a luta interna no PT se transformasse num assunto exclusivo de profissionais políticos. O partido de militantes abnegados tinha deixado de existir.
A terceira crise (2003)
Em 1999, a direção do PT, depois da terceira derrota eleitoral em 1998, realizou mais uma inflexão à direita: impôs um veto à campanha Fora FHC que a CUT e o MST vinham construindo, com o apoio da esquerda interna e externa ao PT, e que tinha realizado em Brasília um ato com cem mil ativistas.
A campanha pelo Fora FHC de 1999 tentava mimetizar o que tinha sido a campanha Fora Collorem 1992, e ameaçava crescer em um contexto de intenso mal estar provocado pela maxidesvalorização do real no primeiro mês do segundo mandato de FHC. O posicionamento inflexível da direção do PT – Zé Dirceu condicionou a sua eleição à presidência do PT à derrota da moção pelo Fora FHC – demonstrou ao governo Fernando Henrique a disposição de bloquear qualquer movimento social.
Coerente com a decisão de comprovar o seu compromisso com a governabilidade, em julho de 2002, a direção do PT articulou um Manifesto no lançamento da quarta candidatura de Lula à presidência, desta vez tendo como vice Zé Alencar, um dos maiores empresários do setor têxtil, e senador por Minas Gerais. Este documento declarava com todas as letras a decisão de honrar o pagamento da dívida pública, interna e externa.
Finalmente, em 2003, depois da eleição de Lula, a direção do PT não hesitou em expulsar Heloísa Helena e os deputados que vieram a formar o PSOL, com a acusação, novamente, de indisciplina, por terem se recusado a votar no congresso a Reforma da Previdência.[5]
Foi a terceira grande crise. Ficou comprovado que a mão da direção do PT não iria tremer no seu giro à direita. A classe dominante brasileira compreendeu o significado deste gesto.. O mesmo não pode ser dito das correntes de esquerda que, inspiradas formalmente no marxismo, decidiram acatar a decisão. Aqueles que então ainda permaneceram no PT, dentro ou fora do governo, passaram a ser uma sombra, ou um cadáver insepulto, porque perderam o que tinham de identidade própria.
A quarta crise
Foi, porém, em 2005, que o PT atravessou a mais séria crise de sua história. Uma parcela do núcleo duro de sua direção foi decapitada, politicamente, pela crise aberta pelas denúncias do mensalão. Apesar de indisfarçável satisfação das frações majoritárias da classe dominante com o governo Lula desde o primeiro mandato, a oportunidade aberta pela crise do mensalão precipitou uma ofensiva política burguesa no Congresso Nacional e na mídia, com algum eco nas ruas, nas fábricas e nas universidades, que fez Lula tremer no Palácio do Planalto.
O mensalão obrigou o PT a sacrificar Zé Dirceu e dezenas de líderes, e deixou o partido desmoralizado entre os setores mais críticos do ativismo operário e popular, em boa parte da vanguarda estudantil mais lutadora, e nos meios da intelectualidade de esquerda mais honesta.
Depois de oito anos no poder a condição de classe da direção do PT mudou (os sinais de enriquecimento rápido passaram a ser indisfarçáveis). O próprio partido mudou de natureza social. Ficou para a história o partido operário reformista. Depois de anos no poder nasceu um partido com relações orgânicas com algumas frações da burguesia brasileira.
A quinta e última crise
A quinta e última crise foi precipitada pelas Jornadas de Junho de 2013. Centenas de milhares nas ruas em mobilizações contra todos os governos, sem poupar os governos liderados pelo PT, em especial, Haddad em São Paulo, e Dilma em Brasília, puseram fim aos dez anos de estabilidade política no país. Em um mês, os índices de aprovação do governo Dilma desabaram, vertiginosamente, de quase 60% para menos de 30%. Depois de setembro, todavia, o governo liderado pelo PT se recuperou. Mas a incerteza política, e a tendência à estagnação econômica, contaminaram os humores da maioria da burguesia, que elevou o tom de suas exigências a Dilma, mesmo depois do leilão do pré-sal.
Evidentemente, não há como prever em que medida este deslocamento terá consequências eleitorais. A mobilização social esteve na história, invariavelmente, à frente da consciência política. Por outro lado, uma mudança favorável aos trabalhadores na relação de forças entre as classes pode ou não abrir o caminho para um fortalecimento da oposição de esquerda.
As grandes massas em luta pelas suas reivindicações, isto é, por uma vida melhor, têm uma compreensão muito parcial das tarefas históricas necessárias para a sua vitória. Também têm imensas dificuldades de imaginar o que seria uma mudança política-social, ou seja, a conquista do poder, e o exercício da política, por elas mesmas, sem a mediação das instituições do regime que desmorona. Vivem “fora da política” a maior parte de suas vidas e, por isso, a delegação do poder político, seja de forma coercitiva, pela usurpação violenta, seja de forma mascarada, pelo voto em alguém, é uma da forças de inércia histórica mais poderosas.
As grandes mobilizações de massas sejam elas operárias, camponesas, ou populares se colocam em movimento para derrubar o governo e o regime sem uma ideia muito clara do que seria necessário erguer no seu lugar, sem um projeto definido de ordem social e política alternativa, e sem propostas previamente acordadas de quais mudanças por realizar. A obra “destrutiva” da revolução surge aos olhos das multidões em luta, com uma urgência e uma clareza proporcionalmente inversa à dificuldade de perspectiva do que seria o novo regime. Uma pesquisa sobre as razões da participação nas manifestações revela que a grande maioria estava nas ruas em defesa de serviços públicos e gratuitos e contra a corrupção.[6]
Toda esta dinâmica, em um contexto muito semelhante ao do “que se vayan todos” da Argentina em dezembro de 2001, das mobilizações da “geração à rasca” em Portugal, dos “indignados” da Puerta de Sol em Madri, ou mesmo dos jovens desempregados na Grécia. Ninguém pode prever qual será o destino do PT a partir da ruptura da nova geração de trabalhadores, os mais instruídos da história do país, porém, precários e com salários miseráveis. A História ensina que a luta de classes pode assumir formas lentas, até que se torna vertiginosa.

[1] Três deputados federais, Bete Mendes e José Eudes, liderados por Airton Soares, romperam com o partido em 1985, porque o PT não apoiou a Aliança Democrática que elegeu, indiretamente, a chapa Tancredo/Sarney no Colégio da ditadura, na seqüência da campanha das Diretas em 1984. Saíram sozinhos, sem deslocamentos militantes, e sem maiores seqüelas na influência eleitoral, que permaneceu ascendente. A trajetória de Soares foi errática: uniu-se ao PDT (esteve nos bastidores da campanha para a presidência de Brizola em 1989), PSDB, PPS (esteve com Ciro Gomes em 1998) e, finalmente, filiou-se ao PV no apoio de Marina Silva em 2010.
[2] O discurso de Lula que sustenta a decisão de votar contra a Constituição, mas assiná-la pode ser conferido aqui: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2008/11/06/por-isso-que-pt-vota-contra-texto-da-constituicao-138367.asp.
[3]A Convergência Socialista tinha sido uma das primeiras tendências presentes desde a fundação. Zé Maria de Almeida foi um dos defensores da ideia da formação de um PT no congresso dos metalúrgicos de Lins em 1979. Em 1992, a acusação que fundamentou a expulsão da CS foi indisciplina, porque a tese que defendia a necessidade de uma campanha para tentar derrubar Collor tinha sido derrotada no 1º Congresso Nacional do PT de 1991, obtendo 30% dos delegados. A CS orientava 10% deste bloco e chegou a ter dois deputados no Congresso Nacional. A CS não aceitou a decisão e, apoiada em sua influência sindical e estudantil, que era superior à sua presença orgânica no PT – aproximadamente, 15% na CUT (Central Única dos Trabalhadores) e 20% na UNE (União Nacional dos Estudantes) – saiu às ruas pelo Fora Collor. O PSTU apresentou Zé Maria como candidato nas eleições de 1998, 2002 e 2010, mas não conseguiu representação parlamentar. Foi a principal corrente da esquerda anticapitalista impulsionadora da CSP/CONLUTAS (Central Sindical e Popular/Coordenação Nacional de Lutas) que nasceu em 2005. Sobre a CS nos anos oitenta: http://www.pstu.org.br/partido_materia.asp?id=10264&ida=58.
[4]A tendência Nova Esquerda surgiu da dissolução do PRC (Partido Revolucionário Comunista) em 1989. O PRC nasceu em 1979 de uma cisão do PCdoB (Partido Comunista do Brasil), cuja história remete à cisão sino-soviética de 1961. O PCdoB manteve referência na linha maoista defendida pela Albânia, e esteve à frente da guerrilha do Araguaia no início da década de setenta. O PRC foi parte da oposição de esquerda que lutou no interior do PT nos anos oitenta. A Nova Esquerda realizou o giro político mais estonteante do final dos anos oitenta: chegou à conclusão que o estalinismo era indissociável do leninismo e do próprio marxismo. Uma análise consistente da evolução do PRC até a Nova Esquerda e. finalmente, a formação da Democracia Radical pode ser conferidas na tese de Eurelino Coelho. (2005), Uma esquerda para o capital: crise do marxismo e mudanças nos projetos políticos dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). Tese de Doutorado. Niterói, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Ou, também, em: http://www.espacoacademico.com.br/089/89ozai.htm.
[5] O PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) nasceu em 2004 da iniciativa liderada pela senadora Heloísa Helena (uma das lideranças da DS que, entretanto, se dividiu, também, e uma maioria de 90% manteve apoio ao governo Lula), e pelos deputados federais João Batista Babá e Luciana Genro, que expressavam as posições das tendências CST (Corrente Socialista dos Trabalhadores) e MES (Movimento de Esquerda Socialista), que tinham surgido de rupturas da CS em 1992. Em 2005, depois da crise do mensalão a Força Socialista, liderada pelo deputado Ivan Valente, rompeu também com o PT e uniu-se ao PSOL. O PSOL mantém representação parlamentar com três deputados nacionais.

23 fevereiro 2014

REGINALDO NASSER: “NA UCRÂNIA, É MANIFESTANTE. EM PARIS, TAMBÉM. AQUI É VÂNDALO, TERRORISTA.”

O professor de Relações Internacionais da PUC-SP fala sobre a narrativa do terrorismo que começa a ser criada no Brasil, e cita a criminalização dos movimentos sociais como fator preponderante na despolitização das reivindicações desses grupos
Por Renato Rovai e Igor Carvalho
Reginaldo Nasser (Foto: Revista Fórum)
Reginaldo Nasser (Foto: Revista Fórum)
Desde junho de 2013, quando as ruas brasileiras foram tomadas pelas manifestações, começou-se a falar  sobre terrorismo no Brasil, país onde não há qualquer tradição de incidentes classificados como terroristas. Após o protesto do movimento “Não vai ter Copa” do último sábado (25), em São Paulo, quando um Fusca pegou fogo e o jovem Fabrício Proteus Chaves, de 22 anos, foi baleado por policiais militares, o assunto voltou à tona.
Segundo o professor de Relações Internacionais da PUC-SP Reginaldo Nasser, a criminalização dos movimentos serve apenas para despolitizar a pauta.”Existem  grupos mobilizados que fazem reivindicações e têm representatividade, mas, se eles fizerem qualquer ato de violência que se encaixe como terrorista, tudo isso que eu falei não interessa mais.”
Em entrevista à Fórum, Nasser lembra a distinção feita para classificar os manifestantes franceses que incendiaram automóveis em Paris, no ano de 2005. “Ou seja, a percepção de uma sociedade que teve 4.200 carros queimados e a outra que teve um e fica nesse estado de comoção é algo de se espantar”, afirmou o professor.
Confira a entrevista:
Fórum – O que é terrorismo?
Reginaldo Nasser – Terrorismo é um ato de violência que provoca temor generalizado nas pessoas, e aparece mais  como tática de ação política. Ou seja, é um meio para atingir algum fim, e , por vez, têm sido utilizado por organizações. Que não poderia ser classificadas simplesmente como terroristas,mas que , eventualmente, dentro de algumas circunstâncias, elas podem praticar terrorismo. Por exemplo, . O caso do grupo Hezbollah é interessante porque foi uma das primeiras organizações a praticar terrorismo suicida no Líbano quando havia ocupação militar de Israel. Quando acabou a ocupação militar de Israel, o Hezbollah nunca mais praticou ato terrorista. E, independente disso, ele carrega a denominação que é terrorista, não que circunstancialmente tenha agido como terrorista .
O ato do terror é algo que provoca temor, e não necessariamente um ato de violência física provoca temor. Então precisamos analisar as circunstâncias do ato de terrorismo. É bom lembrar também que o terrorismo foi muito mais praticado pelo Estado.
Fórum – Terrorismo de Estado, então? É uma outra categoria?
Nasser – É, inclusive, historicamente, foi uma das primeiras formas modernas de que se conhece o terrorismo. A gente fala muito da Revolução Francesa, de liberdade, igualdade, fraternidade etc. Mas Em 1792, Robespierre declarou oficialmente que o Estado francês iria praticar o terror . E a palavra terrorista não era pejorativa,  a percepção muda com o tempo. Quem mais matou na história continua matando são os atos terroristas de Estado. Eu estou dizendo isso porque hoje existe uma corrente muito forte no mundo que qualifica o terrorismo por quem pratica, e não pelo ato e nesse sentido terrorista é apenas  o ator não-estatal.
Fórum – Ou seja, o senhor está me dizendo que pode se caracterizar, por exemplo, uma ação policial como um ato terrorista?
Nasser – Pode, claro. Uma ação militar policial, praticada pelo Estado, pode ser configurada como ato terrorista.
Fórum – Por exemplo, o que aconteceu em Campinas. Um massacre de nove pessoas em um fim de semana. E vários outros atos como esse.
Nasser – Só isso não basta para caracterizar. Ele começa a ocorrer e a se caracterizar quando envia uma mensagem.  Não podemos esquecer ainda que ele envolve uma questão psicológica entre quem pratica e quem pode receber o ato criando  uma situação de temor. No caso especifico as mortes terminaram com esses . Mas, a partir do momento que  você começa a ter outras ameaças generalizadas, as pessoas passam a ter a sensação de  temor. Portanto,  da forma que ocorreu  não dá para caracterizar. Como terrorismo
Fórum – O que caracteriza um grupo terrorista?
Nasser – Eu prefiro dizer um ato terrorista. Essa é minha concepção, de qualificar como ato e não pelo ator que pratica. Pode ser praticado por um grupo não estatal e ou pelo Estado. um ato terrorista envia uma mensagem generalizada, que causa temor nas pessoas. Esse é o objetivo terrorista. Para isso, ele usa vários meios. Os meios até pouco importam para eles. Então, por exemplo, eu quero atingir o Estado e eu mato civis. Do lado do Estado, eu quero que não tenha críticas ao Estado, então eu escolho casos aleatórios, faço uma repressão, pratico a violência e está dado o recado para todo mundo.
Fórum – A ação dos Black Blocs no Brasil é qualificada como terrorista?
Nasser – O que tem sido feito até agora é difícil qualificar como terrorismo. Os ataques aos bancos representam apenas um ataque à propriedade. Se tiver alguém dentro, ele pode ser atingido, mas pelo que eu me lembro os ataques são feitos no horário em que as agências estão fechadas. Mesmo que  estivesse alguém lá dentro, a ação esta circunscrita àquele momento . Eu não vou ficar com medo na minha casa porque os Black Blocs vão atacar outros estabelecimentos . Ou seja, são atos localizados.
Fórum – O ataque à população civil também caracteriza?
Nasser – Quando é Generalizado sim . Isso é importante. Por exemplo, eu quero atingir o Estado X, o que eu faço? Vou explodir um café, um shopping center. Isso sim é um ato terrorista, porque ele causa uma temor generalizado. Por exemplo, o Fusca pegou fogo e, primeiro, não foi um ato intencional, mas  Mesmo que fosse,  naquelas circunstâncias,  não havia o o recado: “Todo mundo que sair com carro, eu vou jogar uma bomba”. Ou, alguém anuncia  que tem um grupo que quer atingir pessoas de alta renda. Então, todo mundo que tiver Mercedes Bens, por exemplo, vai ser atingido. Aí tudo bem, tem um grupo específico que causa temor a uma classe. É um temor generalizado, mas você e eu, que não temos Mercedes, não somos os alvos r.
Fórum – Quantos carros foram danificados e explodidos na periferia de Paris em 2005?
Nasser – 2005 foi o auge. 4.200 carros.
Fórum – E alguém caracterizou aquilo como terrorista?
Nasser – Não me recordo, nem do governo francês. Claro, a direita francesa caracterizou isso como terrorismo. Mas existem outros atos que podemos qualificar como  ação de violência por grupos organizados como : insurgências, revoltas, rebeliões. No meio disso, pode até surgir atos terroristas , mas nesse caso  não foi caracterizado. Foi um tipo de revolta específica da população.
Fórum – Por que, em geral, atos de movimentos sociais da esquerda são classificados como terroristas? Historicamente eu me recordo de Mandela, que foi muito tempo classificado como cidadão perigoso pela Interpol, e classificado como terrorista. Você acha que também é uma tática da repressão estatal?
Nasser – Sim, claro. Porque quando ela classifica um grupo como terrorista, toda e qualquer consideração política deixa de existir. É uma reação automática. Você não quer saber o que ele propõe, qual é a demanda, se a demanda é legítima, já que os meios não são.  Então sim, é uma tática e vamos admitir, é eficiente. Porque ela consegue mobilizar pessoas em função disso. Você tem grupos mobilizados que fazem reivindicações e têm representatividade, mas se eles fizerem qualquer ato de violência que se encaixe como terrorista, tudo isso que eu falei não interessa mais.
Fórum – O senhor me disse há algum tempo, mais de seis meses, que essa questão do terrorismo chegaria no Brasil. Você estava preocupado que houvesse uma mobilização para qualificar as ações de alguns grupos como terrorismo. Isso está acontecendo agora?
Nasser – Isso. Cada vez mais as cidades são um espaço do uso da violência. Da violência de todos os atores. E por quê? A gente fala muito de globalização e não damos concretude a isso. As cidades são os locais onde você tem fluxos de pessoas, fluxos de recursos e mercadoria, capital, idéias e tecnologias. A partir disso, as cidades em situação de desigualdades, de repressão, e assim por diante, faz com que esses elementos se articulem: mobilização e uso de tecnologias. Isso dá uma visibilidade muito grande. Ao dar essa visibilidade, do lado daqueles que reprimem, vão querer descaracterizar essa visibilidade. As cidades são o foco das revoltas. Quando se fala no mundo árabe, se fala em Egito. Mas Não foi no Egito, como um todo e sim  nas grandes cidades , da mesma forma ocorreu na  Líbia. Estou falando isso porque tem um ponto em comum com o Brasil. Uma situação econômica que, ao mesmo tempo, com todos os avanços, tem uma desigualdade imensa. E é nas grandes cidades que isso aparece. Veja só, uma coisa é olhar no sentido nacional o Brasil e comparar os avanços com o IDH; outra coisa é você olhar nos termos de nível estadual , porque a desigualdade aumenta. Se você olhar em termos de cidades, ela aumenta de forma gigantesca. E isso Não é só o Brasil, eu me lembro dos protestos de Londres e fui olhar os níveis de desigualdade. Não é na Inglaterra, é em Londres, e é um negócio espantoso. Como é em Nova Iorque, como é aqui. Tendo essa visibilidade de eventos, de Copa do Mundo . . Lugares de visibilidade são onde vão aparecer os confrontos. Quero dizer, eu manifestante quero usar isso para mostrar minha causa.
Fórum – Ou seja, visibilidade gerada por grandes eventos.
Nasser – Por grandes eventos.
Fórum – É por isso que isso vem acontecendo no Brasil?
Nasser – Sem dúvidas. Veja, a mídia internacional passou a dar mais visibilidade a isso. Vários jornais, blogs etc. já se instalaram no Brasil. O Human Rights Watch se instalou aqui. Quer dizer, o Brasil começa a ser foco disso. , o país começa a ganhar visibilidade para isso. Portanto, os antagonismos tendem a aumentar, sem dúvida nenhuma. Mas precisamos aprender a lidar com os antagonismos. Ou seja, a percepção de uma sociedade que teve 4.200 carros queimados e a outra que teve um e fica nesse estado de comoção é algo de se espantar.
Fórum – É mais espantoso que gente que se diz de esquerda assuma esse discurso.
Nasser – Sim. E quando se olha para fora, para a Ucrânia, é manifestante. Em Paris, também eram manifestantes. Aqui é vândalo, terrorista. É essa questão do olhar, do olhar distante. Na verdade é muito semelhante entre o que  o que acontece em Paris e em São Paulo.
Fórum – E os riscos de usar essa classificação de terroristas para manifestantes, movimentos sociais e grupos que querem contestar a ordem estabelecida?
Nasser – É a completa despolitização. A gente passa a ter politização apenas na hora de depositar seu voto, que é a parte mais pobre que tem na representação. Isso é a completa descaracterização da mobilização política. Porque é inevitável você ter que ir para a rua, fechar o trânsito. Isso é interessante porque em junho passado era algo absurdo. Eu lembro que uma manifestação de delegados no ano passado parou a Avenida Paulista. O argumento era de que tem muitos hospitais e que nós estamos parando o trânsito. A questão da legitimidade é importante.
Fórum – E quais são os riscos legais?
Nasser – O risco de colocar  do terrorismo na lei é de que quando você vai tipificar o ato você vai ter que descrevê-lo. Então você vai colocar: “colocou fogo no carro  é terrorismo”. Você não sabe se a pessoa estava se defendendo. As circunstâncias são retiradas, e são elas que definem tudo, mas você vai poder colocar da forma que quiser. E isso deverá acontecer apenas com com o ator não-estatal. Isso também é complicado. Um rapaz levou três tiros, tinham seis policiais em torno dele armados, e ele com estilete, o chefe da polícia e o governador do Estado disseram que foi em legítima defesa. Nas questões que se relacionam com o terrorismo é importante o uso dos recursos. Vamos chamar de conflitos assimétricos onde o terrorismo é um dos  componentes . O que são conflitos assimétricos? Quando dois ou mais atores  envolvidos, e , pelo menos, um tem recursos desproporcionalmente a mais do que o outro. O outro, na questão, é o Estado. Mais do que isso, com um único ator que tem por princípio a legalidade do uso da violência, que é o Estado. Claro que ele poderá usar os recursos de violência , porque ele é o único a estar qualificado para isso. Se seu agente  entra com uma pistola, uma escopeta, em um hotel  a lei está ao seu  lado  até alguém provar o contrário, portanto o Estado  já sai a frente nesse processo . Por isso precisamos  tomar muito cuidado com esse tipo de questão.
Fórum – Para finalizar, qual a sua maior preocupação em relação a essa discussão hoje?
Nasser – Então, é interessante que há um tempo, principalmente antes de 11 de setembro, tinha uma discussão sobre totalitarismo, vinculado a algumas variáveis, como, eleições, equilíbrios de poderes e que julgo  importantes e fundamentais, e nós não podemos abrir mão. Mas o que tem acontecido é que dentro dos regimes chamados democráticos começam a ser inseridas práticas totalitárias. O exemplo maior disso são  os Estados Unidos, com o combate ao terrorismo. Infelizmente, essa tática está sendo exportada, e o Brasil também me espanta muito, porque está tendo uma boa receptividade disso, menos que a Europa. Com todas as críticas que a gente faz à repressão da Europa, isso não se compara ao padrão norte-americano.
Fórum – Então você está querendo dizer que a gente está comprando a tecnologia antiterrorista dos Estados Unidos?
Nasser – Literalmente. Esse know-how que tem aparecido aqui é norte-americano. As consultorias, a tecnologia, os drones estão aí. Os aviões não-tripulados são tecnologia americana. Em alguns lugares têm aparecido tecnologias de Israel, porque tem semelhanças com o que Israel faz com os palestinos. Eu vejo semelhanças nos meninos palestinos jogando pedra e Israel com um blindado chega de fuzil. Em legítima defesa você joga uma pedra nos meninos. É uma lógica que começa a aparecer aqui, e isso é extremamente preocupante.

15 fevereiro 2014

Programa democrático-popular versus programa de transição!

Juary Chagas
Dentre os grupos e correntes que se destacaram no interior do PT com posicionamentos alinhados ao campo da revolução, estão os trotskistas[1], que, reconhecidamente, cumpriam o papel de “inimigo interno” mais forte da ala hegemônica, a Articulação.
E uma das diferenciações claras com a Articulação – ainda na década de 1980 – residia precisamente na questão da natureza do programa do PT, cujo caráter para os trotskistas deveria ser de transição ao socialismo.
Mais do que apenas um conjunto de palavras de ordem que se materializa em tarefas concretas, o programa de transição é um método que concretiza “um sistema de reivindicações transitórias, que parta das condições atuais e da consciência atual de amplas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado” (TROTSKY, 2008, p. 16).
Entendendo que não é possível superar o capitalismo por meio de reformas, mas somente através da conquista do poder pela classe trabalhadora para expropriar a burguesia, o método do programa de transição rejeita a idéia de separar o programa mínimo (reformas) do máximo (tomada do poder), evitando tanto limitar-se às reivindicações que não ultrapassam o limite do quadro capitalista quanto à repetição da necessidade da revolução como um mantra. Seu objetivo é levantar todo um sistema de reivindicações transitórias que ajude a mobilizar os trabalhadores de modo que, postos em luta por estas reivindicações, percebam que tais conquistas só serão possíveis se se enfrentarem com a burguesia e seu domínio político (Estado) e econômico (propriedade privada) na sociedade:
” o cumprimento da tarefa estratégica é inconcebível sem a mais ponderada atenção a tudo, mesmo às questões táticas pequenas e parciais. [...]
[...] À medida que as velhas reivindicações parciais, “mínimas” das massas chocam-se com as tendências destrutivas e degradantes do capitalismo decadente – e isto ocorre a cada passo – a IV Internacional levanta um sistema de reivindicações transitórias, cuja essência reside no fato de que, cada vez mais aberta e resolutamente, elas estarão dirigidas contra as próprias bases do sistema burguês.” (Idem, ibidem, p. 17-18, grifo nosso)
O grande objetivo do programa de transição é o de combinar o trabalho político cotidiano combinado com as tarefas estratégicas da revolução socialista. Sintetiza a ação política concreta ao redor do que move os trabalhadores (inclusive as consignas parciais progressivas que se apresentam no movimento espontâneo das massas) e a elevação da consciência por meio da agitação, propaganda e da experiência concreta adquirida no curso das lutas que se chocam com a ordem capitalista.
Mas, apesar dos trotskistas e de um aparente “fortalecimento ideológico” que entusiasmava parte da militância petista na segunda metade da década de 1980, as sugestões de “via parlamentar ao socialismo” e o início da flexibilização da política de alianças já sinalizavam naquele período um ensaio para inflexões futuras. Inflexões estas que se tornaram mais evidentes diante de uma definição contraditória que pela primeira vez foi aprovada dentro do PT e que daí em diante provocaria grandes polêmicas: o programa democrático-popular.
O grande questionamento de boa parte dos grupos identificados com a necessidade de um programa socialista no PT (com destaque para os trotskistas) residia justamente na imprecisão do conteúdo programático denominado democrático-popular, que era suficientemente amplo para caber desde um programa de transição, socialista; até uma proposta de “programa mínimo” e de colaboração de classes.
Esta crítica se mostra como correta se considerar que na defesa do programa democrático-popular se expressa um elemento aparentemente de caráter secundário, mas que revela uma inflexão muito importante: embora nunca se tenha utilizado a terminologia “de transição” ou “socialista” para se referir ao programa do PT e mesmo com todas as polêmicas e imprecisões em relação à estratégia de superação do capitalismo (se se daria pela via insurrecional ou por meio da ocupação dos espaços institucionais), por outro lado havia um consenso geral sobre a luta “por um governo dos trabalhadores” (FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 1980b), “um novo poder, baseado na classe operária e na mobilização de todos os que vivem de seu próprio trabalho, para construirmos uma sociedade sem explorados e sem exploradores” (Idem, 1982), com uma demarcação clara de projeto de poder para a classe trabalhadora brasileira.
O V Encontro Nacional do PT (1987), pela primeira vez, aprova uma resolução que modifica esse entendimento:
As propostas que proclamam a necessidade e a possibilidade imediata de um governo dos trabalhadores evitam a discussão sobre qual a tática, qual a política para alcançar esse objetivo. Na prática, separam a luta reivindicatória da luta política, por não compreenderem a necessidade da acumulação de forças. A retórica aparentemente esquerdista recobre a ausência de perspectivas políticas e uma concepção limitada, atrasada, das lutas reivindicatórias.
[...] Na situação política caracterizada pela existência de um governo que execute um programa democrático, popular e antiimperialista, caberá ao PT e aos seus aliados criarem as condições para as transformações socialistas.” (Idem, 1987a, grifos nossos)
Aqui se tem o verdadeiro significado da proposta de programa democrático-popular. As diferenças com o programa transicional socialista na exposição são sutilíssimas ou às vezes praticamente imperceptíveis, mas profundas no conteúdo.
O programa de transição entende que “seu objetivo político [estratégico, a longo prazo] é a conquista do poder pelo proletariado, com o propósito de expropriar a burguesia” (TROTSKY, 2008, p.17, comentário nosso) e, por essa razão, as tarefas colocadas para o momento atual não devem se materializar em elogios abstratos ao socialismo ou à convocação para a tomada do poder imediatamente, mas, devem conduzir a uma única e só conclusão de caráter pedagógico: as principais reivindicações dos trabalhadores só poderão ser plenamente atendidas quando estes estiverem no poder.
O programa democrático-popular, por sua vez, não estabelece essa ponte entre a conquista das reivindicações e a questão do poder. Ao contrário, a negação da consigna do poder para os trabalhadores em detrimento da defesa de “um governo que execute um programa, democrático, popular e antiimperialista” traz subliminarmente consigo a crença de que esse governo não necessariamente precisaria ser dirigido e controlado pela classe trabalhadora, para que tais reivindicações fossem atendidas. Em outras palavras, para executar um programa avançado de reformas que se choque com a ordem capitalista (e, portanto, teria um caráter “socialista”), a luta para acumular forças tendo como objetivo a conquista do poder poderia ficar para um futuro indefinido.
Ora, se para o atendimento dessas reivindicações bastaria “um governo que executasse esse programa”, sem caráter de classe definido, por que não acreditar que essa execução possa ser feita por um governo “eleito democraticamente” que tenha maioria do PT?
Se basta um governo que “conceda tais reivindicações”, sem delimitar que tipo de governopoderia de fato concretizar esses compromissos, para que mobilizar para, por exemplo, derrubar governos, se a força das mobilizações, em tese, poderia “empurrá-los para a esquerda”, dentro das regras da institucionalidade?  Se não é preciso um governo de trabalhadores para executar um programa “democrático e antiimperialista”, qual a razão para não buscar pactos com a burguesia “democrática e não imperialista”?
É importante destacar que até aquele momento, a Articulação ainda não havia defendido publicamente que estas são as estratégias em que aposta. Igualmente, as reivindicações e as consignas programáticas progressivas, que de fato se chocavam com as bases do capitalismo (como a reforma agrária sobre o controle dos trabalhadores, a estatização do sistema financeiro, etc.), também foram mantidas no programa do PT.
Entretanto, a indefinição havia sido plantada. Levantar o conjunto dessas reivindicações, que em sua quase totalidade conservaram o caráter das consignas apresentadas pelo PT das origens unificava praticamente todo o partido, até mesmo a Articulação, pressionada pelo ascenso dos anos de 1987 e 1988. Mas, um programa não é apenas um texto com palavras de ordem.
Para além da agitação de consignas, o programa materializa um método de construção do movimento e embora as reivindicações mais vitais continuassem sendo defendidas pelo PT, a oposição entre “governo dos trabalhadores” e “governo que execute um programa democrático-popular” não era à toa. Além das indefinições até então presentes no PT sobre “qual socialismo” o partido reivindicaria, o programa democrático-popular acrescentava um novo componente que na prática era antagônico à idéia de “poder para os trabalhadores”: o conjunto das reivindicações, mesmo as levantadas fora do momento eleitoral, não necessariamente precisariam se orientar pelo enfrentamento direto entre a classe trabalhadora e a burguesia, mas, poderiam se limitar a uma exigência ao governo de turno, colocando para um horizonte infinito a necessidade dos trabalhadores construírem o seu governo.
Isto, na prática, abria um espaço para que o programa do PT se transformasse num plano de lutas apenas por políticas públicas, ainda que tais reivindicações naquela época conservassem toda a vitalidade e até mesmo sejam consideradas “radicais”. Além disso, os flancos abertos pelo programa democrático-popular permitiam flexibilizações mais profundas, como a defesa da ocupação dos espaços institucionais como via de transição ao socialismo (a tese de que para mudar o Estado, bastaria tomar os postos de governo) e a ampliação do arco de alianças do partido (com a burguesia), sob a bandeira da necessidade de “acumulação de forças”.
Tais movimentações ainda não estavam concretizadas (isso se verificaria somente anos depois), no entanto, estavam ali embutidas no programa democrático popular diferenças de método na elaboração programática e também de estratégia, de modo que a aprovação dessa formulação significava uma sutil preparação do terreno para inflexões mais profundas, que posteriormente de fato viriam a ocorrer.
Desse modo, o programa democrático-popular se revelava, naquele momento, como uma plataforma de reformas “radicais” para uma disputa institucional. O conteúdo progressivo das suas reivindicações naquele momento não anulava o fato de que sua constituição teórica era suficientemente ampla para ser ajustada a qualquer estratégia.
É um programa que pode se mostrar como aparentemente radical, porque pode conservar praticamente todas as reivindicações mais vitais que se chocam com a base do sistema capitalista, mas, diferentemente de um programa de transição, a conquista de tais reivindicações não dependeria da “mobilização sistemática das massas em direção à revolução proletária” (TROTSKY, 2008, p. 18) e sim, da subida ao poder de um governo com o mesmo caráter do programa (democrático-popular), sem que seja necessário para isso exigir-lhe que seja de caráter operário, nem tampouco resultado da insurreição das massas.
Isso infere que, embora o PT na década de 1980 não expressasse claramente em nenhuma resolução partidária que sua estratégia era eleitoral e de colaboração de classes, na prática o programa democrático-popular não estabelece qualquer óbice para que fosse possível conquistar reivindicações de caráter socialista com um governo de conciliação de classes e eleito pelo mecanismo da democracia representativa burguesa. No fim, é isto que prevalece.
O programa democrático-popular, por mais radicais que sejam suas consignas, não define claramente que a conquista dessas reivindicações só poderia se dar mediante um enfrentamentosistemático e que colocasse como condição a luta estratégica pelo controle operário sobre o Estado e os meios de produção/circulação; jamais somente com exigências ou tentando “empurrar para a esquerda” algum governo – que poderia, segundo as formulações petistas, se estabelecer por meio de eleições e que inclusive nem precisaria ser da classe trabalhadora.
O mais grave ainda é que, se um governo democrático-popular é apresentado como a estratégia para conquistar as reivindicações anticapitalistas (como fazem correntes como a Consulta Popular atualmente), mas a correlação de forças na sociedade e dentro desse governo não permitirem o atendimento dessas demandas, seria “legítimo” que o programa fosse flexibilizado.
Fica claro, portanto, que o programa democrático-popular, nada mais é do que a forma “radical” de uma estratégia reformista e potencialmente eleitoral, uma espécie de “transição da transição” com uma roupagem de esquerda, mas que difunde a utopia reacionária (mesmo que subliminarmente), da possibilidade de conquistar reivindicações anticapitalistas sem revolução.
Referências bibliográficas
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Plataforma política. São Paulo, 1980b. [online] Disponível na internet via WWW. URL: http://www.fpabramo.org.br/sites/default/files/plataformapolitica_0.pdf. Acessado em: 15 de novembro de 2013.
_____. Plataforma Eleitoral Nacional. São Paulo, 1982. [online] Disponível na internet via WWW. URL: http://novo.fpabramo.org.br/uploads/plataformaeleitoral.pdf. Acessado em: 10 de novembro de 2013.
_____. Resoluções políticas. São Paulo, 1987a. [online] Disponível na internet via WWW. URL:http://www.fpabramo.org.br/sites/default/files/resolucoespoliticas_0.pdf. Acessado em: 30 de maio de 2013.
TROTSKY, Leon. O programa de transição para a revolução socialista. São Paulo: Editora Sundermann, 2008.

[1] Aqui é importante destacar que dentro do subconjunto das correntes trotskistas também não existia homogeneidade e nem sempre todos os grupos ali presentes se mantiveram no campo da revolução. Dentre as mais importantes organizações inspiradas no trotskismo que integraram o PT estão a ORM-DS (Organização Marxista Revolucionária-Democracia Socialista), formada em 1979 e representante do grupo trotskista Secretariado Unificado Internacional (SU), que tinha à frente Ernest Mandel; o grupo O Trabalho (ex-OSI, Organização Socialista Internacionalista), formado em 1976 e vinculado à Quarta Internacional – Comitê Internacional de Reconstrução; aConvergência Socialista, formada em 1978 por ex-militantes do PST – Partido Socialista dos Trabalhadores, que tinha como referência o partido trotskista argentino dirigido por Nahuel Moreno; a Causa Operária, uma cisão da OSI (depois O Trabalho) em 1979, vinculada ao Partido Obrero da Argentina; e outros agrupamentos de menor peso. Ao longo da trajetória do PT, algumas dessas correntes oscilaram em diversos momentos da trajetória do PT entre posições no campo da revolução e da reforma, com destaque para a Democracia Socialista que, dentre outras coisas, chegou a ser expulsa do SU pelo seu apoio aos governos de conciliação de classe e suas medidas pró-capitalistas.

06 fevereiro 2014

O fantasma de Junho e o governo Dilma: pais do futebol ou país?

                                                                                                     * Silvio Kanner

Tudo estava planejado para ser uma grande festa. O coroamento de mais quatro anos de domínio Petista. Uma festa popular e feliz com o Brasil no centro do mundo por algumas semanas quando o mundo poderia então perceber um novo “Brasil” pós Lula, mais igual, mais empregos, com programas sociais sólidos e com instituições democráticas que se não funcionam a plena capacidade, ao menos funcionam melhor que antes.
Economia de BRIC estável, popularidade presidencial elevada e um projeto de reeleição liquido e certo. Mas planos exigem sacrifícios e sacrifícios muitas vezes geram fantasmas, aqueles que na batalha ficam pelo caminho, entregues ao inimigo pelo estado maior em nome do plano, da estratégia. É inescapável, todo estado maior tem os seus.
A governabilidade do primeiro mandato petista exigia medias temerárias. Dialogar com o congresso numa linguagem compreensível o que o Olympus Petista, a despeito das justificativas internas, já dominava como sua principal ferramenta política: o dinheiro. Desbaratado o “sistema”, no sentido do capitão nascimento, formou-se a primeira franja de fantasmas.
Num grau menor, a liderança do ex-futuro Rede Sustentabilidade também apresenta ares fantasmagóricos. O desgaste da posição pode ser facilmente solucionado sem uma alternativa viável de oposição, o TSE, nesse caso, tratou de solucionar esse possível problema.
A economia dá sinais de crise, estagnação, os juros voltam a subir, depois de uma intensa propaganda da própria presidente sobre o absurdo dos juros altos, as famílias endividadas, e novos atores individuais e coletivos se apresentam no cenário presidenciável.
Mas todos esses problemas e fantasmas são ainda cotidianos, administráveis. Assombrando o governo Dilma, inequivocamente está o fantasma de junho. Lança incertezas ao centro da estratégia, pois como seria fácil de escrever antes de junho, o país da corrupção, das desigualdades, dos serviços públicos precários, dos privilégios políticos, e segue a lista, esquece todos esses problemas diante das suas duas grandes paixões: o carnaval e futebol. A copa resolveria tudo, num momento mágico de emulação e entusiasmo, mas junho está presente, precisamente para demonstrar que os brasileiros não pensam mais assim.
As grades mobilizações durante a copa das confederações surpreenderam todos, erguendo uma enorme sombra
Os pesos pesados da classe trabalhadora brasileira parecem estar fora do páreo! Controlados por lideranças governistas e acostumados a métodos diferentes de mobilização, apresentam-se desconectados.
Não queremos mais o “somos pobres, nosso governo não trabalha para nós, mas somos um país tropical abençoado por deus”. O fantasma de junho ameaça a principal ideologia brasileira. Ideologia que foi apropriada em toda a sua dimensão pela estratégia Petista. Não pensando em junho, mas em outubro. Não pensando no Hexacampeonato, mas quarto mandato. A idéia eixo desse plano ameaça evaporar.
Quando a idéia não convence, a coação pode assumir outro papel! Já vimos esse filme, copa e repressão já combinaram, Dilma estava de outro lado.
O espectro de junho, parafraseando Marx, ronda o Brasil, algo está para se decidir. Brasil, o país do futebol? ou o país que trata bem seu povo, colocando-o no centro das preocupações governamentais.


* Presidente da Associação dos Empregados do BASA - AEBA

03 fevereiro 2014

Gastos com estádios superam repasse para educação.

Nove dos 12 municípios que sediarão a Copa do Mundo de 2014 receberam mais repasses federais para a construção e reforma de seus estádios do que recursos para a educação no período entre 2010 e setembro de 2013. Levantamento feito pela Agência Pública a partir de dados da Controladoria-Geral da União (CGU) revela que apenas Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo receberam mais dinheiro federal para a educação do que para as obras das arenas esportivas.
O cálculo da Agência Pública levou em conta apenas os repasses federais para os municípios, sem os valores desembolsados pelos estados e pelas próprias prefeituras. Em Recife, por exemplo – veja o quadro -, a construção da Arena Pernambuco recebeu um financiamento três vezes maior do que o que o governo federal repassou para a educação na capital pernambucana.
O financiamento tomado pelas unidades da federação para construir ou reformar as praças esportivas, no valor máximo de R$ 400 milhões, devem ser pagos com juros ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
“Copa do Mundo, eu abro mão. Quero dinheiro pra saúde e educação”. Este foi um dos gritos mais ouvidos durante as manifestações de junho em diversas capitais brasileiras. De fato, ao comparar os investimentos do governo federal com as bandeiras da população, as prioridades parecem não ser as mesmas.
Exceções
Das sedes, a única que não teve investimento direto da União na construção do estádio foi Brasília. Toda a verba usada até agora para a reforma do Estádio Nacional Mané Garrincha saiu dos cofres do governo do Distrito Federal. Mais especificamente da Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap), que tem o governo federal como sócio minoritário.
Entre 2010 e setembro de 2013, informa a Agência Pública, a capital do país recebeu R$ 33 bilhões para a educação. O valor entra na conta do GDF pelo Fundo Constitucional do DF, uma espécie de aluguel pago pela União por Brasília ser a sede dos poderes da República. A verba deve ser usada exclusivamente em educação, saúde e segurança pública.
Para financiar a reforma do Maracanã, o governo do Rio de Janeiro tomou emprestados do BNDES R$ 400 milhões. De 2010 até setembro, a União repassou R$ 1,6 bilhão para a educação. Em São Paulo, cujo estádio está sendo construído pela iniciativa privada, houve o financiamento de R$ 400 milhões. Maior cidade do país, a capital paulista teve o repasse de R$ 465 milhões.
Legado
A Agência Pública relacionou os investimentos públicos relacionados ao evento e dividiu-os entre os que ficarão como desejável legado para população brasileira, como aeroportos, portos e mobilidade urbana, e os que foram feitos exclusivamente para a realização do Mundial – como os estádios, os gastos em telecomunicações, segurança, turismo, etc. – sempre utilizando os valores contratados, de acordo com o Portal da Transparência da CGU.
De acordo com o levantamento, só nas estruturas provisórias, montadas para receber espaços de mídia, exposição comercial e atendimento a torcedores VIP, entre outras coisas, foram gastos R$ 208,8 milhões em verbas estaduais nas seis sedes da Copa das Confederações de 2013. Segundo a Pública, o governo federal já investiu R$ 7,5 bilhões em estádios, R$ 814 milhões em obras nos entornos das praças esportivas, R$ 422 milhões em segurança, R$ 226 milhões em turismo, R$ 167 milhões em telecomunicações e mais R$ 24 milhões em outras ações.
Já no legado que será deixado para a população houve um investimento um pouco menor. O grosso dos recursos foi destinado para obras de mobilidade – R$ 6,5 bilhões – e aeroportos – R$ 1,7 bilhão. Outros R$ 528 milhões tiveram como destino os portos brasileiros. No entanto, obras como o monotrilho da Linha 17 – Ouro, em São Paulo, orçada em R$ 2,8 bilhões, e a linha 1 do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), em Brasília, foram excluídas da matriz de responsabilidades e devem demorar a sair do papel.