06 março 2013

Qual o legado de Chaves?


O nacionalismo burguês representado pelo chavismo não acabou com a pobreza
ou a desigualdade social na Venezuela.
 
 
   Chávez: uma variante do velho nacionalismo burguês

• Desde que Chávez anunciou publicamente no dia 8 de dezembro a reincidência de seu câncer e uma nova cirurgia de emergência em Cuba, pouco ou nada se sabe sobre seu real estado de saúde. Especulações e boatos à parte, é quase consenso que a grave situação do dirigente bolivariano é irreversível e que muito dificilmente ele retornará ao cargo de presidente.

Deve-se respeitar a comoção de inúmeros ativistas e militantes honestos perante o drama pessoal de Chávez. Mas os acontecimentos recentes na Venezuela reacendem o debate sobre o chavismo e o real significado de seu “Socialismo do Século XXI”.

Durante os 14 anos em que esteve à frente do país, Chávez se tornou principal referência para grande parte da esquerda no mundo. “Hoje temos uma economia em transição ao socialismo” chegou a discursar o vice-presidente Nicolás Maduro ao dizer que a política do governo não mudaria no tempo em que Chávez estivesse convalescendo em Havana.

Mas seria mesmo a Venezuela dirigida pelo chavismo um país rumo ao socialismo ou, pelo menos, um avanço na luta contra o imperialismo?

Um nacionalismo burguês em nova roupagem
O fenômeno que possibilitou o surgimento do chavismo foi um produto da mobilização das massas venezuelanas. Em 1989 uma verdadeira insurreição popular contra a miséria e a inflação, conhecida como “Caracazo”, havia sacudido o país. O governo conseguiu sufocar a revolta, mas a crise econômica e política só se aprofundaram. Em 1992 o então tenente-coronel das Forças Armadas, Hugo Chávez, aproveitou-se do desgaste do governo de Carlos Andrés Pérez para tentar um golpe de Estado. Chávez fracassa, é preso, mas se transformou em uma referência política.

Em 1998 o militar de discurso nacionalista, já anistiado, lidera uma frente de partidos reunidos no "MovimentoV República" (MVR) e vence as eleições presidenciais, pondo fim à hegemonia de 40 anos dos partidos tradicionais da direita. A Venezuela que Chávez assume é um país com uma brutal desigualdade social e pobreza e com os políticos desacreditados após sucessivos escândalos de corrupção.

No governo, Chávez anuncia sua “revolução pacífica”, ou seja, uma política de mudanças graduais por dentro do Estado burguês, apoiando-se sobretudo, em sua base social, as Forças Armadas. Já a nova constituição promulgada em 2000 teve como principal medida centralizar ainda mais o poder nas mãos do Executivo. Com a onda de revoluções que passou pela América Latina na virada do século, Chávez foi reorientando o discurso nacionalista para a sua versão peculiar de socialismo.

Se por um lado Chávez e seu governo são produtos da mobilização das massas, porém, por outro se coloca à cabeça desse processo para institucionalizá-lo, desviando-o para uma política nacionalista burguesa, autoritária e que, apesar do discurso, não rompe com o imperialismo.

Apoiado em um setor da burguesia venezuelana que esteve ao seu lado mesmo antes de ser eleito, o governo passou à cooptação das direções sindicais e dos movimentos populares. Em 2007, Chávez avançou ainda mais em seu projeto de centralização política ao lançar as bases do PSUV (Partido Socialista Único da Venezuela), um partido com o objetivo de reunir toda a sua base e a esquerda, colocando-os sob a disciplina chavista. Quem não aderiu ao partido de Chávez foi tachado de “contrarrevolucionário”, mesmo que a legenda também reunisse “empresários socialistas”.

Produto da cooptação de dirigentes do movimento, da aproximação com empresários leais ao regime e da corrupção no aparelho do Estado, surge ainda a chamada “boliburguesia”, a burguesia “bolivariana”, que enriquece graças aos negócios com o Estado. Entre os exemplos mais proeminentes desse setor estão o presidente da Assembleia Nacional e um dos principais dirigentes do chavismo, Diosdalo Cabello e o presidente da PDVSA, a estatal do petróleo, Rafael Ramírez, ambos figuram entre os homens mais ricos da Venezuela. Cabello é dono de três bancos, indústrias e ações de empresas que mantém negócios com o Estado.

As nacionalizações realizadas com estardalhaço pelo governo Chávez, por sua vez, não passam de aquisições de ações de empresas, compactuadas com as multinacionais do setor sem qualquer conflito. Isso ocorre principalmente no setor petrolífero, em que a PDVSA participa de empresas mistas junto com as multinacionais da área, como também na CANTV (Compañía Anónima Nacional Teléfonos de Venezuela), uma das maiores e mais lucrativas empresas do país em que, apesar de ser oficialmente estatal, tem a maior parte controlada por empresas privadas.

A Venezuela deixada pelo chavismo
Não seria justo atribuir os graves problemas sociais da Venezuela apenas ao chavismo. Durante décadas a direita tradicional governou o país atendendo os interesses do imperialismo e tornando a Venezuela um dos países mais desiguais e pobres do continente. No entanto, passados 14 anos de governo Chávez, esses problemas persistem e tendem a piorar diante do agravamento da crise econômica.

Os programas sociais do governo venezuelano reduziram a pobreza extrema no país de 49% em 1999 para 29,5 % em 2011 (dados da Cepal). Mesmo assim, está acima da média da América Latina, de 28,8%. Na zona rural do país, os níveis de pobreza chegam a 59%.

Nos últimos 10 anos o conjunto de países no subcontinente foi favorecido pela alta demanda por matérias-primas, sobretudo da China. A condição de exportadores de commodities permitiu um relativo crescimento e, em geral, as taxas de pobreza e desemprego melhoraram, como ocorreu no Brasil, ainda que os problemas sociais estruturais estejam mais presentes do que nunca (a região conta ainda com 167 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza). Mesmo assim, em 2011, a Venezuela foi na contramão desse processo e teve um aumento de 1,7% na índice de pobreza e 1% na taxa de indigentes.

A verdade é que, por trás do discurso pretensamente revolucionário do chavismo, esconde-se uma política econômica que, em si, não difere muito dos governos anteriores. É totalmente dependente da exportação de petróleo (representa 90% das exportações venezuelanas e algo como 30% do PIB), continua atrelado e pagando em dia a dívida externa (que passou de 14% do PIB em 2008 para 30% em 2010) e com uma das mais altas taxas de inflação do mundo, que em 2012 fechou em 20% e que atinge de forma dramática os mais pobres. Como se isso não bastasse, a violência urbana explodiu nos últimos anos.

Por trás dessa situação que continua afligindo o povo da Venezuela está um sistema que permanece beneficiando as grandes empresas e o imperialismo.



A farsa do “anti-imperialismo”
Não é por menos que a Organização dos Estados Americanos, a OEA, tenha aceitado a manobra do governo em postergar indefinidamente o atual mandato diante da impossibilidade de Chávez em comparecer à cerimônia de posse, que deveria ocorrer dia 10 de janeiro. O imperialismo contrariou boa parte da direita venezuelana a fim de garantir uma estabilidade política que, em última instância, o beneficia.

Exemplo dessa situação foi o que o diretor para mercados emergentes do Eurasia Group, Christopher Garman, expressou ao jornal Estado de S. Paulo do dia 9 de janeiro: “Existe a percepção de que uma Venezuela pós-Chávez pode ser melhor para os negócios, mas nós temos de lembrar que as instituições políticas foram criadas em torno de Chávez”, explicou, para depois afirmar: “Com a oposição ou com um chavismo sem Chávez, nossa preocupação é que a instabilidade política e institucional possa afastar os investimentos e a confiança do investidor”.

O setor mais importante da Venezuela atende os interesses do imperialismo. Grande parte do petróleo cru exportado pelo país, por exemplo, tem como destino os EUA (suprindo o petróleo que a potência deixou de contar com o Oriente Médio deflagrado). Enquanto isso, a Venezuela se vê obrigada a importar petróleo refinado, assim como uma série de produtos básicos que não fabrica.

A desnacionalização da produção do petróleo, cujo marco foi a quebra do monopólio estatal em 1995, aprofundou-se com Chávez e hoje as gigantes do setor se apoderam da matéria-prima venezuelana. A PDVSA atua em conjunto com grandes empresas multinacionais, que também contam com áreas exclusivas de exploração. Empresas como a Conoco-Phillips, a Chevron-Texaco e a Exxon-Mobil controlam algo como 40% da produção do país.

Mas se do ponto de vista econômico, a Venezuela não contraria os interesses do imperialismo, politicamente Chávez seria um apoio à luta anti-imperialista na região? Infelizmente, nem isso. Em 2011 o governo venezuelano deixou a esquerda perplexa ao prender o representante das Farc que visitava o país, o jornalista Joaquín Pérez Becerra, e enviá-lo ao governo da Colômbia.

Chávez assumiu publicamente a responsabilidade pela medida, que passou ao largo de qualquer lei internacional em defesa dos refugiados e exilados políticos, apenas para atender um pedido do presidente colombiano Juan Manuel dos Santos, sucessor de Álvaro Uribe.

A esquerda chavista, que tanto aplaude de forma efusiva qualquer palavra do presidente contra os EUA, calou-se. E a história mostrou mais uma vez que o nacionalismo em um país periférico não é capaz de se contrapor ao imperialismo.

A responsabilidade da esquerda
Para além dos discursos ufanistas da cúpula chavista, as perspectivas não são nada boas para os trabalhadores venezuelanos. A situação da economia se agrava, o aumento da dívida pública provoca um rombo nas contas e um déficit fiscal de 20%. Pouco antes da internação de Chávez, o governo preparava o anúncio de um pacote de ataques a fim de enfrentar a crise. Conjuntura que já vêm produzindo arranhões no governo.

O desgaste do chavismo se expressou nas eleições outubro quando, apesar de Chávez ter ganhado com relativo folga, a vantagem de 54% dos votos contra 44% do candidato adversário foi a menor desde as eleições de 1998. Grande parte dos votos do candidato da direita, o governador de Miranda Henrique Capriles, ocorreu porque muitos trabalhadores resolveram “castigar” Chávez.

Sem uma alternativa política que conseguissem identificar, muitos trabalhadores que rompiam com o chavismo acabaram dando seu voto ao representante da direita. A mesma direita que destruiu o país nos anos 1980 e 1990 e que, alijada do poder, tentou um golpe em 2002 contra o governo de Chávez.

Esse é o dilema da esquerda. O governo Chávez conta hoje com o apoio da grande maioria da população, sobretudo dos mais pobres. Porém, tal apoio está ligado aos programas sociais (as “missões”), assistencialistas, que constituem fonte de sobrevivência a milhões de pessoas. Além de não resolverem os problemas estruturais do país, tais programas tendem a desaparecer diante do agravamento da crise.

A grande maioria da esquerda socialista, no entanto, não só não se lançou à tarefa de construir um polo independente, classista, como passou de malas e bagagens para o lado do chavismo, oferecendo um apoio quase que incondicional ao dirigente bolivariano e ao seu nacionalismo burguês. E aí está o drama para os trabalhadores. Quando as massas venezuelanas fizerem sua experiência com o chavismo, qual a alternativa que aparecerá para a classe trabalhadora? Nenhuma, além do retrocesso da direita.

A exemplo de Lula no Brasil, o chavismo vai na contramão do classismo e lança confusão entre os trabalhadores ao afirmar que é possível chegar ao socialismo junto com os empresários. Impede a livre organização dos trabalhadores ao reprimir e limitar a atuação dos sindicatos, partidos e movimentos independentes. Tenta fazer crer que o desenvolvimento da Venezuela não é antagônico aos interesses do imperialismo e suas empresas.

A única política realmente progressiva que se pode ter diante dessa complexa conjuntura é a luta pela organização independente dos trabalhadores, denunciando a direita neoliberal e pró-imperialista e explicando pacientemente às massas venezuelanas o real papel e caráter do chavismo.

Artigo publicado no Opinião Socialista 455 de 23 de janeiro de 2013


 
            

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