Juristas e entidades veem endurecimento na repressão e criticam uso da Lei de Segurança Nacional e Lei de Combate ao Crime Organizado contra manifestante.
A Lei de Segurança Nacional (7.170/83) está em vigor no Brasil desde 1983, período da ditadura militar, quando foi assinada pelo então presidente João Batista Figueiredo. Seu objetivo é proteger o País de “subversivos” que queiram lesar a integridade territorial ou a soberania brasileira. Os delegados de plantão também utilizaram a novíssima Lei de Combate ao Crime Organizado (12.850/13), que define como organização criminosa a associação de quatro ou mais pessoas, ainda que informalmente, para praticar crimes. As penas podem chegar a dez anos de prisão.
Nos episódios anteriores, os manifestantes estavam sendo indiciados por crimes previstos no Código Penal, como dano ao patrimônio, dano qualificado, lesão corporal, e por vezes formação de quadrilha, cujas penas não passam de três anos de prisão. A nova estratégia, segundo movimentos de defesa de direitos humanos, tem o intuito de criminalizar e amedrontar as pessoas que vão às ruas. “É um total absurdo aplicar a lei de Segurança Nacional e a lei de Combate a Organizações Criminosas no contexto das manifestações. Aliás, isso abre um precedente muito perigoso e antidemocrático”, analisa Alexandre Ciconelo, assessor de Segurança Pública da Anistia Internacional Brasil.
O órgão questiona a validade da lei de Segurança Nacional, que chama de “dura e anacrônica”, já que sua regulamentação aconteceu antes da Constituição de 1988, o que a revogaria tacitamente. “O uso de uma lei da ditadura, que não foi criada para regular esse tipo de situação, é para reprimir e criminalizar o protesto nas ruas”, diz Ciconelo. Rafael Custódio, coordenador de Justiça da Conectas, diz que é preciso aplicar a legislação correta contra desvios nos protestos, para evitar abusos na punição. “O que une o uso dessas duas medidas é um excesso acusatório do Estado”. Para Custódio, a lei dialoga com um passado que o Brasil já superou. “Uma pessoa que quebra um vidro não está colocando em perigo o Estado democrático”, diz.
Insegurança jurídica
O jurista Fábio Konder Comparato diz que a lei de Segurança Nacional padece do vício de ter sido promulgada durante um regime de exceção, sem nenhum fundamento na democracia. Apesar disso, ele não vê risco pontual de insegurança jurídica na aplicação da lei. “O povo nunca teve segurança jurídica. Segurança jurídica é só de quem exerce o poder no Brasil. E quem exerce o poder é uma minoria, no Brasil sempre foi uma oligarquia, de modo que o que nós temos que fazer é denunciar os abusos do governo, e denunciar também os abusos dos manifestantes”, disse. “Evidente que quando a simples manifestação sem abuso é reprimida, e reprimida duramente, isto acaba gerando uma situação de absoluta impossibilidade para o povo de se exprimir livremente. Tem que reprimir, mas no sentido de evitar que haja quebra-quebra.”
Eraldo Patriota, conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), diz que, além de anacrônica, a lei de Segurança Nacional não é adequada para enquadrar manifestantes, que estão longe de serem “terroristas”. “Não é para a gente desenterrar um entulho autoritário. Essas pessoas não querem ruptura institucional, essas pessoas não querem o impeachment da presidente, não querem fechar o Congresso ou o Supremo. O que eles querem é um Estado mais justo”, diz. Já em relação à nova legislação de combate a organizações criminosas, Patriota enxerga possíveis razões para os integrantes exaltados dos protestos serem enquadrados. “Se existirem evidências fortes de que isso é uma organização criminosa, que se reúne para destruir patrimônios públicos, é possível um processo sim. Para isso, é preciso comprovar planejamento prévio, como em redes sociais”, explica.
Patriota critica a falta de investigação e de disposição do Estado em aplicar os instrumentos jurídicos presentes no Estado democrático, mas não vê esse endurecimento como um risco de criminalização aos movimentos sociais, ou à livre manifestação. “Quem pratica atos colocando em risco a incolumidade pública, a coletividade, não é movimento social. O direito de se manifestar é sagrado, mas o direito de não querer fazer parte, de não querer se manifestar, também é sagrado”, diz. “A grande discussão é que a gente tem que fazer é que o Estado é legitimado para usar a força, com proporcionalidade, para evitar o caos que temos visto.”
A Anistia Internacional entende que o uso da força policial durante os protestos ultrapassa os limites legais, especialmente quanto ao uso das armas menos letais, como spray de pimenta, e as detecções de manifestantes. “Há um abuso da autoridade policial no uso da força, no uso da repressão e em prisões completamente arbitrárias”, diz. “Manifestantes foram presos no Rio só por estarem sentados em frente ao Municipal”, exemplifica Ciconelo.
A favor
“A Lei de Segurança Nacional é adequada”, diz Ademar Gomes, presidente do Conselho da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de São Paulo (Acrimesp), voz dissonante entre os especialistas ouvidos pelo iG . “Ela não foi revogada. Se ela serviu para combater os abusos na época da ditadura, como regime, ela serve também para coibir os abusos na democracia”, afirma. Gomes não vê nos tipos comuns do Código Penal uma alternativa para penalizar eventuais desvios nas ruas. “Não são suficientes porque a pena é mínima, e eles vão responder em liberdade. Isso não intimida os baderneiros que saem às ruas para depredar órgãos públicos.”
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