Felipe Demier(blog da cst)
“Mas aquele que blasfemar contra o Espírito Santo não terá, para sempre, perdão, visto que é réu de pecado eterno.” (Matheus 3:29)
Às vésperas do aniversário da República, o Supremo Tribunal Federal (STF) ordenou a prisão de José Dirceu, entre outros condenados pelo chamado “crime do mensalão”. Ao se apresentar na sede da Polícia Federal em Brasília, o ex-dirigente máximo do Partido dos Trabalhadores (PT) ergueu o punho cerrado, repetindo, assim, o gesto que ele próprio fizera, algemado, antes de embarcar, em setembro de 1969, num avião da Força Aérea Brasileira (FAB) – que conduziria para o México os militantes de esquerda trocados pelo embaixador norte-americano (sequestrado pela guerrilha antiditatorial brasileira). Mas o José Dirceu preso em 2013 não é senão uma caricatura daquele de 1969. O gesto permaneceu, mas o homem mudou, e muito.
Dirceu fora preso em 1968, em Ibiúna, interior de São Paulo, quando da fracassada tentativa de realização do XXX Congresso da União Brasileira dos Estudantes (UNE). Trocado pelo embaixador norte-americano, foi banido do país e buscou asilo em Cuba. Corajosamente, voltou em 1971, no fastígio da ditadura empresarial-militar, e viveu aqui clandestinamente por cerca de oito anos (tendo retornado a Cuba nesse meio tempo para fazer uma cirurgia plástica que melhor o disfarçasse dosgendarmes brasileiros). Com a anistia, em 1979, assumiu sua verdadeira identidade e se engajou na formação do PT. Dirceu foi, assim, um dos responsáveis pela construção daquela que foi, durante aproximadamente uma década, uma poderosa ferramenta política de luta do proletariado brasileiro. Portador de distintas concepções programáticas (reformistas e revolucionárias, grosso modo), mas unificado em torno das práticas cotidianas, o PT desempenhou na década de 1980 o papel de condutor e organizador político das lutas dos trabalhadores do país.
Fiel ao seu nascedouro, o partido era alimentado e alimentava as principais mobilizações operárias do país, carregando sempre as bandeiras da independência de classe dos trabalhadores e do fim da ditadura militar (1964-1985). Diretamente responsável pela fundação, em 1983, da maior central sindical da história do país, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o PT mantinha também ligações orgânicas com a reorganização dos trabalhadores do campo, que se traduziria na criação, em 1984, do movimento dos trabalhadores rurais sem-terra, o MST. Depois de quase duas décadas, importantes setores das massas trabalhadoras da cidade e do campo acordavam do pesadelo iniciado em 1964. Entretanto, nessa nova fase de seus combates os trabalhadores brasileiros contavam com um instrumento político incomparavelmente superior às que possuíram na etapa populista.
Por mais que entre os defensores de uma feição reformista para o PT, como Dirceu, existissem aqueles mais suscetíveis às pressões do Estado capitalista, durante quase toda a década de 1980 o partido manteve seu eixo eleitoral-parlamentar subordinado à sua atuação no movimento operário-popular. Isso significa dizer que a participação do PT nos processos eleitorais se realizava como uma forma de expressão, na esfera institucional, das demandas do movimento popular organizado. As políticas defendidas pelos candidatos petistas possuíam um forte lastro com as propostas defendidas pelos setores mais conscientes da classe trabalhadora. A prática política do PT se ancorava, portanto, na atuação de seus militantes junto aos trabalhadores, que naquele momento avançavam qualitativamente em sua organização sindical e política. Assim, os cargos públicos obtidos pelos candidatos do partido eram encarados como mandatos pertencentes aos setores populares que organizadamente haviam construído as candidaturas de suas lideranças sociais e políticas. Diferentemente do que ocorreria depois, os organismos de base do partido gozavam de um relativo controle sobre os parlamentares eleitos, o que diminuía consideravelmente as chances de que estes últimos se “autonomizassem” das bandeiras políticas com as quais haviam se eleito e adotassem as práticas de congraçamento que imperavam (e imperam) no Congresso Nacional, como o “mensalão” (certamente não inventado pelo PT). Nos anos 1980, não foram poucos os burgueses e seus prepostos políticos que perderam noites de sono em função do PT. Provavelmente, Dirceu estava entre os protagonistas dos pesadelos noturnos.
As eleições municipais de 1988 começariam a alterar significativamente a natureza e o funcionamento do partido. Além de aumentar em seis vezes o número de vereadores eleitos em 1982, o PT elegeu seus candidatos em 36 prefeituras. Contudo, pela primeira vez, o PT conquistava prefeituras de peso e visibilidade nacional, como as de Porto Alegre (RS), Vitória (ES) e São Paulo (SP), a maior cidade da América do Sul.[1] Ampliavam-se consideravelmente as áreas de fronteiras do partido com o Estado. Ocupando postos executivos, PT experimentava agora o papel de administrador das instituições republicanas brasileiras, e via-se imerso em estruturas historicamente consolidadas por negociatas, corrupção e outras práticas de governo do capitalismo. Por detrás do sonho dos reformistas do PT, liderados por Dirceu, de implementar uma “outra forma de governar” (o modo petista de governar), iniciava-se, de forma localizada, a experiência do PT como gerente do capitalismo brasileiro, posição que o partido ocupa, desde 2003, em âmbito nacional. O aumento significativo das zonas de interseção entre o PT e o Estado brasileiro se constituiu no principal fator da degeneração partidária. Iniciada substancialmente nas eleições municipais de 1988, a ocupação de postos e cargos públicos pelos dirigentes petistas estendeu-se em nível estadual ao longo da década seguinte, aumentando a dependência material do partido perante o Estado capitalista. A administração de recursos financeiros do Estado por parte de dirigentes petistas, em grande parte adeptos de concepções não-revolucionárias, criou as condições propícias à formação de uma camarilha burocrática, liderada por Lula e Dirceu. Centenas, e depois milhares de militantes, foram afastados de seus locais de atuação (fábricas, escolas, bancos, hospitais etc.) e absorvidos por gabinetes parlamentares e secretarias públicas. Reuniões e acordos com empresários e banqueiros tornaram-se suas novas tarefas. Surgiu, como declarou César Benjamin, um contexto “muito favorável à burocratização, cuja lógica capturou milhares de quadros: parlamentares, prefeitos, assessores, ou pessoas desejosas de vir a ser parlamentares, prefeitos e assessores”.[2]
O aumento de arrecadação do partido, acarretado pela sua imbricação com as instituições estatais (contribuição dos parlamentares, doações burguesas etc.), ao mesmo tempo em que proporcionava uma extensão e maior eficácia das tarefas cotidianas da militância, deixava muito claro de onde provinham os recursos que permitiam esse salto organizativo. Os reformistas liderados por Dirceu, que sempre tiveram a faca na mão, tinham agora também o queijo, do qual poderiam fazer uso das fatias para cooptar parcela substantiva dos militantes. Na disputa entre revolucionários e reformistas no interior do PT, os últimos começaram a adquirir, a partir de 1988, as condições materiais que lhes proporcionariam, em breve, a vitória final. Colhiam os frutos, sozinhos e a seu modo, dos faustos eleitorais construídos por toda a militância no dia-a-dia junto à classe trabalhadora. Somaram-se a essa inserção do partido no aparato estatal brasileiro outros aspectos que contribuíram para a inflexão política sofrida pelo PT, os quais, por razões de espaço, não poderemos discutir aqui.[3]
Em 1992, um PT já significativamente adulterado em relação ao seu conteúdo original enfrentaria seu primeiro grande teste político. Quando as massas juvenis saíram às ruas para derrubar Fernando Collor de Mello, e quando sua queda era quase inevitável, a direção petista, com Dirceu à frente, encarregou-se de se mostrar como alicerce da institucionalidade democrático-liberal, defendendo a posse do Vice-Presidente Itamar Franco, apresentando, assim, limites claros ao movimento contestatório. Não satisfeitos, Dirceu e cia. não hesitaram em expulsar a Convergência Socialista (CS) devido ao “grave crime” cometido pela corrente: defender o “Fora Collor” quando a direção do PT ainda não havia aderido a esta bandeira. Em termos históricos (no que se refere à história do Partido dos Trabalhadores), tal expulsão significou o início de um processo de exclusão dos setores militantes que não mais poderiam ser tolerados por um PT que se tornava a cada dia mais adaptado à ordem do capital. Esse processo de expurgo teria fim pouco mais de dez anos depois com a expulsão dos “radicais”, desta vez pelo também “grave crime” de terem votado contra a reforma neoliberal da Previdência levada a cabo pelo governo Lula em 2003. No meio do caminho (isto é, entre 1992-2003), muitas correntes e elementos da esquerda partidária ou se afastaram do partido, ou se adaptaram também ao aparato estatal e subordinaram-se à cúpula dirigente comandada por Dirceu.
Dirceu foi, assim, um dos principais responsáveis tanto pela construção do PT, quanto pela sua degeneração em um “partido da ordem” executor de contrarreformas, as quais vêm incontinentemente atacando os direitos dos trabalhadores. Dirceu, portanto, é culpado (sem direito aos tais “embargos infringentes”) por ter conduzido a expropriação da classe trabalhadora de sua mais importante ferramenta política na história republicana brasileira. Dirceu prestou, com isso, um inestimável serviço à burguesia brasileira. Quando girou o PT à direita nos anos 1990, e quando se apresentou, anteontem, na sede da Polícia Federal, ele já não era mais o arguto garoto de Ibiúna, nem tampouco o intrépido revolucionário que escapava pelas ruas de São Paulo e do Paraná das mãos dos sádicos torturadores e assassinos financiados pelo empresariado nacional e internacional. Dirceu já era, já é, outro, e, do ponto de vista da esquerda socialista, se tornou indefensável. Não cabe recurso.
Ocorre, entretanto, que foi não o transformismo do PT[4] o crime pelo qual Dirceu foi parar atrás das grades nesse aniversário da República. Do mesmo modo, não parece ter sido o seu envolvimento em atividades ilícitas e corruptas o real motivo de sua condenação pelo STF, composto de insignes figuras como Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. Afinal de contas, o tribunal em questão já absolveu ilibados políticos como Collor e Malluf (aliados atuais do PT, vale apontar), nada fez a respeito dos obscuros processos de privatização do governo Fernando Henrique Cardoso e, não satisfeito, já anunciou que não vai anular a votação da reforma da Previdência, a qual, segundo o próprio tribunal, foi aprovada de forma fraudulenta. É como agarrar o ladrão, prendê-lo, mas deixá-lo em posse do dinheiro que roubara da vítima. Incrível a dialética jurídica do STF…
A nosso ver, Dirceu está pagando pelo crime de, uma vez encerrado o transformismo do PT, ter sido o principal criador e timoneiro de uma monstruosa máquina partidária capaz de gerir o capitalismo brasileiro melhor, e mais seguramente, do que as próprias representações políticas tradicionais da burguesia brasileira, máquina essa que, por isso, se tornou quase invencível no jogo eleitoral da democracia liberal. Ex-guerrilheiro, vindo “de fora” dos círculos dominantes, no melhor estilo outsider, Dirceu, para garantir o sono tranquilo da burguesia brasileira, deu um golpe de mestre nos partidos políticos que essa mesma burguesia brasileira criara. Ao seguir pagando religiosamente a dívida externa, reproduzindo a concentração de renda, freando a reforma agrária e esfacelando os serviços públicos e direitos sociais (para garantir a taxa de lucro das grandes corporações financeiras, industriais e do agronegócio), o PT fez do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) uma oposição sem programa e sem sentido. Parafraseando o Marx, pode-se dizer que é triste o partido que, na oposição, vê o seu programa ser implementado pelo adversário. Contudo, por estratégia de dominação social num país que contava com índices obscenos de desemprego, o PT, ao aceder ao governo federal, aumentou o crédito para o mercado consumidor, ampliou significativamente a distribuição de migalhas via bolsa-família e abriu concursos públicos, angariando, com tais medidas, um alargamento de sua base social-eleitoral. Do ponto de vista do próprio capital, não há, racionalmente, melhor forma de gestão da ordem capitalista contrarreformista.
Contudo, se Dirceu logrou conquistar para o PT o apoio do grande capital (que nos pleitos eleitorais financia mais este partido do que seus concorrentes – convém assinalar), parece não ter sido perdoado pelos chefes políticos da burguesia e seus aliados midiáticos. Vertebrado subjetivamente pelos editoriais jornalísticos, o burguês comum, tomado isoladamente, com sua mentalidade tacanha e mesquinha, não é capaz de uma visão política estratégica para sua classe, e não se reconhece na figura de um administrador de “esquerda” do capitalismo, que outrora pegou em armas contra o Estado e que, há relativamente pouco tempo, empunhava bandeiras vermelhas e defendia greves. O burguês ordinário porta-se, assim, com José Dirceu tal qual um nobre o faz com um arrivista plebeu que cativou o coração de sua bela filha: não havendo opção, o galante pode até ser aceito na casa, mas não é da família e, na primeira crise conjugal, há que ser posto pra fora de onde nunca deveria ter entrado. Por mais que tenha prestado enormes serviços à burguesia brasileira, Dirceu não é um lídimo filho dela e, do mesmo modo que uma empregada doméstica pode até jantar na mesa da sala, mas não deve dar pitacos nas temáticas encetadas na refeição, Dirceu não deveria ter ousado mostrar aos políticos da classe dominante como realmente se defende os interesses desta. Esperto, capaz e jactancioso, Dirceu talvez tenha ido longe demais nos serviços prestados à nossa oligárquica burguesia.
Assim, pela segunda vez em sua vida, José Dirceu foi para o cárcere. Mas a história, como se sabe, só se repete como farsa. Se, na primeira prisão, Dirceu era um revolucionário que tenazmente enfrentava a ditadura burguesa, na segunda adentrou a cela na condição de um político burguês togado rejeitado pela própria burguesia que cortejara e ajudara. Além de vingativa, a burguesia brasileira é, por demais, ingrata. José Dirceu foi vítima do próprio regime democrático-liberal que ajudou a consolidar no país. Com a domesticação do PT, ajudou enormemente a burguesia brasileira, mas, tendo ido além e feito do partido um vitorioso eleitoral contumaz contra os partidos genéticos dessa mesma burguesia, não foi salvo pelos imparciais juízes desta. Para os da esquerda socialista, não há o que lamentar, mas tampouco o que comemorar. Deixemos que Arnaldo Jabor e consortes procurem os seus para as histéricas libações nos grandes salões. Os anseios de justiça de uma classe trabalhadora traída por Dirceu não podem ser realizados pelo mesmo STF que encerrou, pela chantagem, a greve dos professores do Rio de Janeiro, e que, dia sim, dia não, põe em liberdade figuras como Daniel Dantas e o assassino de Dorothy Stang. Os nossos desejos não podem ser confundidos com os de outrem, sob pena de perdermos nossa própria identidade. Não pode haver substitucionismo político-jurídico nesse caso. Regozijar-se com a punição de um inimigo pelas mãos de outro (quiçá pior) não é senão alimentar uma reacionária sanha inquisitória que, ao fim e ao cabo, pode nos ter como alvo principal.
[1] A única capital governada pelo PT anteriormente havia sido Fortaleza (CE), quando Maria Luiza Fontenelle, em 1985, foi eleita prefeita. Ainda que Fortaleza já fosse uma capital importante e até meso maior que Porto Alegre e Vitória, a experiência da administração petista permanecia, até os faustos eleitorais de 1988, como algo isolado.
[2] Entrevista de César Benjamin in DEMIER, Felipe. As transformações do PT e os rumos da esquerda no Brasil. Rio de Janeiro: bom texto, 2003, p. 12.
[3] Quanto a isso, ver DEMIER, Felipe. “Das lutas operárias às reformas reacionárias: uma proposta de periodização para a história do Partido dos Trabalhadores” in História e Luta de Classes, nº 5, 2008.
[4] Quanto ao transformismo do PT, ver a brilhante obra de COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o Capital: o transformismo dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). Feira de Santana/São Paulo: UEFS/Xamã, 2012.
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