A economia capitalista e o marxismo
A Idade Média foi um período de atraso e ignorância. Os povos estavam divididos em pequenas unidades político-econômicas chamadas feudos. Cada feudo tinha seu príncipe, suas leis, suas unidades de peso e medida, sua moeda e seu exército. A economia era de subsistência e o comércio entre feudos era esporádico, se resumindo a uns poucos itens que sobravam ao final de cada safra. A burguesia nasceu, cresceu e se fortaleceu como classe revolucionária no seio dessa sociedade agrária atrasada. O ímpeto comercial da burguesia rompeu essa arcaica estrutura social: vieram as grandes navegações, o renascimento das cidades, das artes e das ciências, e com elas o comércio mundial. A velha sociedade não suportou o choque, e os antigos feudos se unificaram nas grandes nações e povos que conhecemos hoje. O Estado nacional burguês, a economia nacional burguesa e a nação burguesa foram gigantescos passos progressivos na história da humanidade. Mas a burguesia não parou por aí em sua cruzada revolucionária: ela criou também a produção mundial e com isso unificou o planeta inteiro economicamente.
Marx considerava a mundialização da produção um fenômeno essencialmente progressivo, como a verdadeira base material da sociedade comunista, mas alertava para o fato de que esse passo adiante na capacidade produtiva humana havia encontrado um novo limite histórico na propriedade privada, no caos do mercado e nas fronteiras dos Estados nacionais. E eram justamente esses limites que precisavam ser superados. Ou seja, o marxismo parte das conquistas progressivas do capitalismo e busca superá-las positivamente, criando assim uma sociedade superior.
E o anarquismo? O que propõe em termos de economia?
A economia anarquista
Há distintas visões dentro do anarquismo sobre como deveria funcionar a economia do período pós-revolucionário. Mas alguns traços comuns podem ser delineados.
A ideia anarquista da oposição a qualquer tipo de poder centralizador se reflete também em sua visão econômica. Diferente do marxismo, que propõe a nacionalização de toda a propriedade burguesa e o controle racional de toda a economia por meio do Estado proletário, o anarquismo propõe que cada empresa seja controlada por seus próprios trabalhadores. E por mais ninguém. Os trabalhadores da GM controlariam a GM; os trabalhadores da Petrobrás controlariam a Petrobrás, e assim por diante.
Aqui começam os problemas: ora, sob o capitalismo, o controle operário da produção (cada grupo de trabalhadores controlando a sua empresa) é uma reivindicação revolucionária, pois se choca com a propriedade privada burguesa. O patrão diz: “façam isso”, e os operários fazem outra coisa; o patrão diz: “produzam em tal quantidade”, e os trabalhadores produzem em outra. Isto, sob o capitalismo, é fantástico. Por isso a burguesia tem tanto medo das comissões de fábrica e das organizações por local de trabalho. Não é um verdadeiro marxista aquele que não defende, com todas as forças, o controle operário como uma importante bandeira de luta contra os capitalistas.
Mas como tudo na vida, algo que é bom sob certas condições pode ser ruim sob outras. Em uma sociedade que tenha destruído a propriedade burguesa, em que não haja mais capitalistas, o controle operário por empresa deixa de ser algo progressivo e passa a ser regressivo. Quando se destrói a burguesia, a única medida realmente progressiva em termos econômicos é a planificação econômica nacional, não o controle operário por empresa.
Isso é assim justamente pelo que dizíamos antes: a nacionalização, e depois a mundialização da economia, levadas a cabo pela burguesia em sua época revolucionária, são uma grandiosa conquista, da qual o proletariado não pode abrir mão, sob pena de construir uma sociedade que, ao atomizar suas forças, acabe sendo inferior ao capitalismo.
Além disso, seria realmente justo, por exemplo, uma vez expropriada a burguesia, que os trabalhadores da GM controlassem a GM? Ora, um carro da GM também é fruto do trabalho dos trabalhadores das auto-peças, da indústria da borracha, da indústria do vidro, da indústria química, da indústria eletrônica e um longo etc. Na verdade, todas as riquezas produzidas no país são fruto de um trabalho tão profundamente coletivo, que seria impossível dizer quais trabalhadores de quais empresas contribuíram nesta ou naquela produção. A realidade é uma só: todos os trabalhadores de todas as empresas contribuem com toda a produção nacional. Ponto. E é por isso que é nacionalmente, nunca localmente, que a produção deve ser controlada. O anarquismo quer tornar os trabalhadores de uma dada empresa senhores daquela produção; o marxismo quer tornar toda a classe trabalhadora senhora de toda a economia.
Por isso dizemos que a proposta anarquista de fragmentação dos trabalhadores em empresas isoladas é um retrocesso em relação ao capitalismo, que é centralizado, concentrado, mundial e, justamente por isso, altamente produtivo.
A “liberdade” segundo o anarquismo
“Calúnia! Nenhum anarquista jamais negou a necessidade das empresas-comunas estabelecerem relações entre si!”, dirão os anarquistas. E é verdade. Muitos teóricos anarquistas reconheceram essa necessidade e falaram sobre ela. Mas quais relações exatamente, segundo os anarquistas, essas empresas-comunas deverão estabelecer? Certamente não serão relações decididas em algum centro de comando, por exemplo, um “Congresso Nacional de Conselhos Operários” que venha a se instalar depois da revolução, pois isto equivaleria a um poder estatal centralizador, o que vai contra os princípios do anarquismo. “O fundamental é que sejam relações livres, decididas pelos próprios coletivos que controlam essas empresas”, dirão. Mas como seria isso na prática?
Em sua obra Ideia geral sobre a revolução no século 19, Pierre-Joseph Proudhon, considerado o pai do anarquismo, esclareceu o tema com a ideia de “contrato”: “Deixe-nos perguntar, que necessidade temos nós de governo quando fizemos um acordo? O Banco Nacional e suas várias filiais não garantem centralização e unidade? O acordo entre fazendeiros para compensação, comércio e renda das propriedades rurais não cria unidade? Partindo de outro ponto de vista, as associações industriais para administrar a grande produção não criam unidade? (…) A idéia de contrato exclui a idéia de governo”.
E mais adiante, no mesmo livro: “Em lugar das leis, colocaremos contratos: não haverá mais leis votadas pela maioria ou mesmo por unanimidade. Cada cidadão, cada cidade, cada sindicato fará suas próprias leis. Em lugar do poder político, colocaremos forças econômicas”.
Muito bem, agora nos deixe perguntar aos anarquistas: que diferença há entre essas ideias e o liberalismo clássico, segundo o qual a mão invisível do mercado regula perfeitamente todas as relações sociais, sem a necessidade de qualquer intervenção por parte do Estado? Que diferença há entre as ideias de Proudhon e aquela ideia bem conhecida, segundo a qual as empresas, ao comercializarem livremente seus produtos, contribuem para o “bem comum” de toda a sociedade?
Ora, o pensamento de Proudhon é coerente: se não há um controle consciente por parte do Estado, a única forma de regular as relações entre as empresas é, de fato, o livre comércio. Mas isso é capitalismo, e não socialismo. Para Proudhon, assim como para o liberalismo clássico, a ideia de liberdade é inseparável da ideia de livre comércio: “Suprimir a concorrência significa suprimir a própria liberdade”.
Proudhon quer acabar com as leis e substituí-las pelos “livres contratos”. Mas não será a venda da força de trabalho do trabalhador para o capitalista também um “livre contrato”? Certamente é. E por acaso todos nós não lutamos contra a proposta de ACE (Acordo Coletivo Especial) do governo e da CUT, que visa substituir a CLT pelos “acordos” entre empresas e trabalhadores? Certamente lutamos. E o fazemos porque sabemos que entre desiguais nunca haverá “livre acordo”. As relações entre partes desiguais precisam ser reguladas, sempre no interesse da parte mais frágil, ou do todo ao qual ambas as partes se subordinam. Justamente para isso servirá o Estado proletário e as leis proletárias. O comunismo não será construído com a prolongação das desigualdades por meio de “contratos”, mas com a erradicação consciente desta desigualdade através de mecanismos econômicos e políticos.
Cada trecho dos escritos do pai do anarquismo é, verdadeiramente, a justificação de esquerda do pensamento liberal. Mas não bateremos em demasia nesta ferida tão dolorosa para os anarquistas. Afirmamos apenas que nós, marxistas, pensamos o contrário: no lugar do poder cego e alienado das forças econômicas, que esmagam os mais fracos e elevam os mais fortes, colocaremos leis que diminuam conscientemente as desigualdades, que reparem os crimes econômicos e a disparidade de condições. Defenderemos a intervenção consciente, centralizada, nacional (e depois internacional!) de toda a classe trabalhadora sobre a economia. “Ação e intervenção consciente!”, e não “livre contrato!”: eis para o marxismo, a verdadeira definição de liberdade.
O caráter utópico do anarquismo
O socialismo anterior a Marx entrou para a história com o nome de “utópico” porque se resumia a especulações sobre as características de uma sociedade futura imaginada como perfeita. Já o marxismo é chamado também “socialismo científico” porque foi Marx quem expôs, pela primeira vez, não apenas os males da sociedade capitalista, mas a condição concreta para a libertação da humanidade (a extinção da propriedade privada) e o sujeito desta transformação (a classe trabalhadora).
Diferente do socialismo utópico, o anarquismo teve o mérito de ver na revolução social e na classe trabalhadora as chaves para a transformação do mundo. Mas em todos os outros aspectos, seu pensamento permaneceu utópico. Ao se recusar a estender qualquer ponte entre a sociedade presente e o futuro, o anarquismo permanece atado ao velho espírito de Saint-Simon, Fourier, Owen e outros filósofos utópicos, que dedicaram suas vidas a pensar um mundo melhor, mas que jamais realizaram qualquer transformação real. As experiências cooperativas dos socialistas utópicos do século 19 nunca passaram de minúsculas ilhas no imenso oceano capitalista. Já a Comuna de Paris e o Estado soviético fizeram maravilhas no pouco tempo que tiveram, e por isso são nossos exemplos e jamais serão esquecidos.
Os anarquistas são, em sua esmagadora maioria, revolucionários sinceros. Mas por mais que não queiram ou não admitam, são os herdeiros indiretos da escola utópica, os últimos românticos. E na dura luta de classes, na guerra sangrenta contra o capital, no violento parto que dará à luz um novo mundo – o romantismo pode ser nobre e belo, mas certamente não é útil. A ele opomos a fria e seca, porém verdadeira e cortante, escrita de Lênin, e com ela encerramos este artigo:
“Não somos utopistas. Nunca 'sonhamos' poder dispensar bruscamente, de um dia para o outro, toda e qualquer administração, toda e qualquer subordinação; isso são sonhos anarquistas resultantes da incompreensão do papel da ditadura proletária, sonhos que nada têm em comum com o marxismo e que na realidade não servem senão para adiar a revolução socialista até que os homens venham a ser de outra essência. Não, nós queremos a revolução socialista com os homens tais como são hoje” (O Estado e a revolução).
Publicado originalmente no Opinião Socialista 473