13 dezembro 2013

Oportunismo político, um conceito de Rosa Luxemburgo, não saiu de moda no Brasil.


Marco Aurélio Weissheimer
Rosa Luxemburgo era uma adversária ferrenha de todo e qualquer empirismo em matéria de convicção e de ação políticas. Ela só concebia a atividade política como expressão de um conjunto articulado e coerente de convicções teóricas, orientadas por um certo método. No seu caso, o método marxista. Apoiada em Marx, Rosa Luxemburgo via na história um processo no qual as forças de classe lutam pela defesa de interesses originários da evolução de relações econômicas objetivas. A tarefa da esquerda, assumido esse método, consistiria em reexaminar, a cada etapa desta evolução, o rumo apontado pelas transformações econômicas e suas conseqüências sobre os interesses, as concepções e a atividade política dos diferentes grupos sociais. Essa reflexão permanente deveria orientar cada passo da atividade política.


Em sua famosa polêmica com Bernstein, líder e teórico da social-democracia alemã no início do século XX, Rosa Luxemburgo critica o oportunismo teórico e prático do mesmo. É interessante relembrar alguns pontos desta polêmica, pois ela tem elementos que permanecem atuais, em especial aqueles relacionados ao conceito de oportunismo na política. Ao atacar as posições de Bernstein, Rosa Luxemburgo aponta as principais características daquilo que define como oportunismo:


¿Qual a sua principal característica, exteriormente? A hostilidade à teoria. E é muito natural, pois nossa ¿teoria¿, isto é, os princípios do socialismo científico, impõe à atividade prática limites muito precisos, tanto no que diz respeito às finalidades que se têm em mira como aos meios a empregar para atingi-las, como também ao próprio método de luta. Daí o esforço natural dos que buscam somente resultados práticos imediatos para libertar-se, isto é, separar nossa prática da ¿teoria¿, tornar uma independente da outra.¿
(¿Reforma ou Revolução¿, São Paulo: Ed. Expressão Popular, 1999; tradução de Lívio Xavier; página 114)


Para Rosa, o oportunismo não se acha em condições de elaborar uma teoria positiva, capaz, por qualquer forma, de suportar a crítica. No contexto da polêmica com Bernstein, ela dizia que, tudo o que um oportunista pode fazer é, começando a combater a teoria marxista em suas diversas teses isoladamente, chegar a atacar o sistema como um todo, ¿desde o alicerce ao último andar¿ (op.cit., p. 115). Segundo ela, isso prova que, ¿pela essência e pela base, a prática oportunista é irreconciliável com o marxismo¿ (p. 115).


Não é preciso ser um marxista para extrair, destas passagens, algumas ferramentas conceituais importantes para refletir sobre a situação política brasileira. A aversão à teoria sempre foi, e ainda é, uma das chagas da atividade política. É bom que se diga que tal aversão não é um monopólio brasileiro. Trata-se de um bem democraticamente distribuído pelo mundo, pelo menos na esfera de um certo modo de compreender a política. Os interesses eleitorais imediatos continuam dando o tom dos acontecimentos políticos, pelo menos na superfície. No fundo, porém, eles expressam a postura ideológica dos agentes políticos, à esquerda e à direita. Os exemplos da direita são, em geral, mais escandalosos, pois seus agentes costumam ser menos sutis em seus atos. A política brasileira fornece fartos e ilustrativos casos desse modo de agir. Um deles, antigo e reatualizado por recentes eventos é o troca-troca de partidos.


Nas últimas semanas, o Rio Grande do Sul vivencia uma verdadeira epidemia destes eventos, à esquerda e à direita. O vereador mais votado do Partido dos Trabalhadores em Porto Alegre, nas últimas eleições municipais, José Fortunatti, deixou o partido e foi para o PDT, alegando a crescente burocratização que estaria afetando a principal sigla da esquerda brasileira. Fortunatti foi buscar, no partido liderado por Leonel Brizola, a democracia interna que, segundo ele, não existe mais no PT. Logo no seu ingresso, pode ver como funciona a democracia interna trabalhista. Sem qualquer consulta às bases do partido, Brizola anunciou que Fortunatti poderia concorrer ao cargo que quisesse, inclusive ao governo do Estado.


Semanas depois, foi a vez do ex-governador Antônio Britto deixar o PMDB e migrar para o PPS, de Ciro Gomes, juntamente com um grupo de dissidentes. A origem da diáspora peemedebista: a briga entre o grupo de Britto e o grupo do senador Pedro Simon pelo controle do partido no Estado. Nenhuma divergência teórica minimamente séria foi apontada como razão das trocas. As contingências pré-eleitorais, a disputa por indicações a cargos eletivos e as disputas de egos mais rebaixadas fornecem os elementos explicativos para tais mudanças. O fato de Britto, um aliado da política neoliberal do presidente Fernando Henrique Cardoso até aqui, final do segundo mandato, um ardoroso simpatizante e praticante das privatizações e do enxugamento do Estado, ir para um partido que, supostamente, é herdeiro da tradição marxista e faz oposição ao governo federal, não causa grandes constrangimentos entre os atores em questão. ¿É da política¿, dizem. É próprio do oportunismo político mais rebaixado, diria Rosa.


Quem lê as críticas da revolucionária alemã ao seu ex-aliado Bernstein, diminui seu espanto ao ouvir as declarações do líder nacional do PPS, senador Roberto Freire. Segundo ele, o ingresso de Britto e seu grupo não representa qualquer problema de incoerência política. Para ele, o fato de Britto ter implementado uma política neoliberal no Rio Grande do Sul, não significa que ele não seja de esquerda. Esta coisa de esquerda e direita é muito relativa, sugere o senador pernambucano. Deslumbrado com os avanços tecnológicos do final do século, ele defende que a esquerda deve debruçar-se sobre estes novos territórios e passar a adotar posições arrojadas, entre elas, a defesa dos transgênicos. Nada de novo sob o sol. É impressionante comparar algumas falas do ex-comunista Freire com alguns textos de Berstein. As semelhanças são gritantes: o deslumbramento com as novas tecnologias, com os avanços do capitalismo, que aconselhariam a renúncia à transformação social e a adoção de reformas nos marcos capitalistas. A partir desta caracterização, as coalizões eleitorais exigiriam cada vez mais concessões programáticas.


Nem o PT escapa deste problema, embora em proporções diferentes, qualitativa e quantitativamente. Emir Sader costuma dizer que o PT é um partido pré-gramsciano, com um perigoso amor ao empirismo e, conseqüentemente, uma considerável aversão à teoria e à formulação intelectual. Essa posição foi expressa literalmente pelo atual secretário geral de comunicação do partido, Ozéas Duarte, durante a Conferência Nacional de Comunicação do PT, realizada recentemente em Brasília. Questionado por um militante aborrecido com a falta de uma política de comunicação consistente e com a ausência de uma reflexão mais aprofundada sobre o problema no partido, Ozéas Duarte respondeu com uma sinceridade constrangedora: ¿Não adianta. O PT é um partido empírico. Os petistas não gostam de ler. Eu mesmo já escrevi vários documentos e ninguém deu bola. Não escrevo mais. Se alguém aí (dirigindo-se ao plenário) quiser escrever, fique a vontade¿. A inocente confissão empirista de Ozéas comprova, de modo cristalino, a afirmação de Sader.


A derrota das experiências socialistas no século XX fez com que muitos militantes e intelectuais de esquerda jogassem fora o bebê com a água do banho. Em recente entrevista à revista ¿República¿, o presidente nacional do PT, José Dirceu, disse que o partido nunca foi marxista-leninista. De fato, nunca foi, embora uma considerável parcela de seus militantes e simpatizantes sejam herdeiros desta tradição. E há elementos desta tradição que, talvez, não devessem ser sacrificados ao altar do empirismo. O respeito pela teoria e pela reflexão sobre a evolução das relações econômicas objetivas, tendo em vista a formulação da estratégia de ação política, são alguns deles. A sedução da moderação que vem rondando a esquerda brasileira não parece ser fruto de uma reflexão deste tipo, mas sim de um cálculo que leva em conta muito mais interesses eleitorais de curto prazo do que as transformações econômicas e políticas atualmente em curso no mundo. A crise internacional potencializada pelos recentes atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos exige, mais do que nunca, um respeito pela teoria, pelo conceito, pela reflexão, como elementos necessários de definição da estratégia política. O empirismo identificado por Emir Sader, reconhecido por Ozéas Duarte, não parece ser uma boa bússola para a ação política, muito menos motivo de orgulho.


A crítica que Rosa Luxemburgo dirige ao fenômeno da aversão à teoria na ação política, de certo modo, transpõe, para o terreno da política, uma máxima epistemológica kantiana: a intuição sem o conceito é cega, o conceito sem a intuição é vazio. De um lado, teríamos um empirismo cego, desprovido de conceito e embalado apenas pelo nosso contato imediato com a experiência. De outro, um abstracionismo vazio, puramente conceitual e descolado da experiência. A distância entre a política e a epistemologia é grande, mas essa transposição talvez possa servir como uma metáfora de advertência sobre os perigos que acompanham a sedução do empirismo na política. A capitulação ao pragmatismo, aos interesses particulares mais imediatos e à lógica de curto prazo que os acompanha tem um alto preço: as concessões programáticas, a flacidez dos princípios, o abandono gradativo dos conceitos que estruturam um projeto coletivo, a degradação progressiva da qualidade da ação política. Neste sentido, talvez não seja um bom caminho para a esquerda abandonar completamente algumas ferramentas metodológicas de sua melhor tradição. Entre elas, aquelas identificadas por Rosa Luxemburgo em sua crítica a Berstein. Desprezar essa tradição pode ter como resultado o esvaziamento de seus conceitos fundamentais, ou pior, sua transfiguração em símbolos tão alterados pela prática, a ponto de não serem mais reconhecidos por seus próprios criadores. 

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