Ventura é uma pequena cidade na costa do Pacífico, a cerca de uma hora de carro ao norte de Los Angeles. Casas de luxo com vista para o oceano pontilham as encostas e as praias são populares entre os surfistas. Ventura é a Califórnia da imaginação das pessoas. “É um lugar abastado”, diz o capitão William Finley. “Mas cerca de 20% da cidade corre o risco de virar sem-teto.” Finley comanda uma divisão local do Exército da Salvação.
Em meados do ano passado, Ventura lançou um programa piloto, administrado por Finley, que permite que pessoas durmam em seus carros dentro dos limites da cidade. Isso normalmente é ilegal, tanto em Ventura quanto no restante do país, onde moradores e autoridades locais temem ver vans em estado precário, cheias de trabalhadores migrantes mexicanos, estacionadas em ruas residenciais.
Mas no início do ano passado, as pessoas em Ventura perceberam que os carros estacionados em frente de suas casas à noite não eram veículos velhos, mas peruas e utilitários esportivos bem cuidados. E as pessoas que dormiam nelas não eram trabalhadores rurais ou moradores de rua comuns, mas seus antigos vizinhos.
Finley também notou uma mudança. De repente, o dobro de pessoas estava fazendo uso do programa de refeições gratuitas de sua organização de serviços sociais, e algumas até mesmo chegavam dirigindo BMWs – aparentemente relutantes em abrir mão de seus carros caros, que os recordavam de dias melhores.
O capitão os chama de “os novos pobres”. “Esta é uma categoria diferente de pessoas que estamos vendo”, ele diz. “São pessoas que nunca imaginaram que algum dia seria sem-teto.” Eram pessoas que tinham dinheiro suficiente – em alguns casos muito dinheiro– até recentemente.
“A imagem do que é uma pessoa pobre atualmente é diferente. Quando eu cresci pobre, e éramos bem pobres, nós andávamos em um carro com 10 anos de idade e com alguns amassados. Era o único carro da família e vivíamos de alimentos distribuídos por caridades”, diz Finley. “No passado, você se esforçava para sair da pobreza e então melhorava de vida.”
O modo de vida americano caminha na direção oposta
Era o modo de vida americano, um caminho trilhado por milhões. “Hoje, a imagem é a de carros último modelo, que a certa altura custaram 40 mil, 50 mil (dólares), mas essas pessoas agora não sabem mais o que fazer, e estão vivendo de comida doada por organizações de caridade. E para muitas delas, é preciso um esforço imenso para engolir o orgulho”, diz Finley.
Hoje, o modo de vida americano caminha na direção oposta: para baixo.
Por algum tempo, os Estados Unidos pareciam ter saído relativamente ilesos da pior crise econômica em décadas – com vigor e energia renovados– como fizeram após crises do passado.
O governo estava anunciando novos números de crescimento econômico já no início do último trimestre do ano passado, muito mais cedo do que o esperado. Os bancos, moribundos até recentemente, voltaram a ganhar bilhões. Empresas de todo o país estão anunciando forte crescimento e o mercado de ações quase retornou aos níveis pré-crise. Até mesmo o número de bilionários cresceu, em bons 17%, em 2009.
Há duas semanas, o fundador da Microsoft, Bill Gates, e 40 outros bilionários prometeram doar pelo menos metade de suas fortunas para filantropia, seja ainda em vida ou após a morte. Os Estados Unidos são um país tão abençoado com riqueza que pode arcar em doar bilhões, assim fácil?
Crescente ressentimento
A ação de Gates poderia também ser interpretada como uma campanha de relações públicas, em um país onde os super-ricos sentem que apesar de estarem lucrando com a crise, como seria de se esperar, o número de pessoas afetadas de forma adversa por ela cresceu enormemente. Eles também sentem que há um crescente ressentimento na sociedade americana contra aqueles no topo.
Para as pessoas nas faixas de renda mais baixas, a recuperação já parece estar falhando. Os especialistas temem que a economia americana possa permanecer fraca por ainda muitos anos. E apesar dos muitos programas assistenciais do governo, a pequena dose de esperança que proporcionam ainda precisa ser sentida pelo público em geral. Na verdade, para muitas pessoas as coisas ainda continuam piorando dramaticamente.
Segundo uma recente pesquisa de opinião, 70% dos americanos acreditam que a recessão ainda continua plenamente. E desta vez não são apenas os pobres que foram atingidos de forma especialmente dura, como geralmente são durante recessões.
Desta vez a recessão também está afetando pessoas com alta escolaridade e que ganhavam bem até recentemente. Essas pessoas, que se consideram solidamente como sendo de classe média, agora se sentem mais ameaçadas do que nunca na história do país. Quatro entre 10 americanos que se consideram como parte da classe média acreditam que não conseguirão manter seu status social.
O desemprego persiste
Em uma recente história de capa intitulada “Adeus, Classe Média”, o “New York Post” apresentou aos seus leitores “25 estatísticas que provam que a classe média está sendo sistematicamente erradicada da existência na América”. Na semana passada, a importante colunista online Arianna Huffington emitiu um alerta quase apocalíptico de que “a América corre o risco de se transformar em um país de Terceiro Mundo”.
De fato, os Estados Unidos, após as crises imobiliária, financeira, econômica e agora da dívida, que ainda não foram superadas, corre o risco de uma Era Glacial social mais severa do que qualquer coisa que o país viu desde a Grande Depressão.
Mais de um ano após o fim oficial da recessão, a taxa de desemprego geral permanece consistentemente acima de 9,5%. Mas esse é apenas o número oficial. Quando corrigido para incluir as pessoas que já desistiram de procurar emprego ou mal sobrevivem com as poucas centenas de dólares que ganham em empregos de meio expediente e estão usando suas economias, a taxa real de desemprego sobe para mais de 17%.
Em seu relatório anual atual, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos nota que a “insegurança alimentar” está aumentando, e que 50 milhões de americanos não tiveram condições de comprar comida suficiente para permanecerem com saúde em algum momento do ano passado. Um entre cada oito adultos americanos e uma entre quatro crianças atualmente sobrevive de cupons de alimento do governo. São números inacreditáveis para o país mais rico do mundo.
Ainda mais perturbador é o fato dos Estados Unidos, que sempre foram caracterizados por sua crença inabalável no Sonho Americano e em sua convicção de que qualquer um, mesmo aquele na mais baixa das condições, pode ascender ao topo, estarem começando a perder seu famoso otimismo. Segundo dados recentes, uma minoria significativa de cidadãos americanos atualmente acredita que seus filhos estarão em situação pior do que eles.
Muitos americanos estão começando a perceber que para eles, o Sonho Americano ultimamente mais parece um pesadelo. Eles enfrentam a realidade amarga de cada vez menos empregos, décadas de salários estagnados e aumentos dramáticos na desigualdade. Apenas nos últimos meses – à medida que a economia crescia, mas sem o retorno dos empregos, à medida que os lucros voltavam, mas os números de pobreza aumentavam semanalmente– o país parece ter reconhecido que está lutando com uma crise estrutural profunda, que se desenvolveu por anos. Como escreve o “Washington Post”, a crise financeira foi apenas o último passo – para pior.
Para onde foi todo o dinheiro?
O boom em ações e imóveis, o endividamento louco do país e seu consumo excessivo por muito tempo mascararam o fato de que a grande maioria dos americanos não se beneficiou quase nada com os 30 anos de crescimento econômico. Em 1978, a renda per capita média para os homens nos Estados Unidos era de US$ 45.879. O mesmo número para 2007, corrigido pela inflação, era de US$ 45.113.
Para onde foi todo o dinheiro? Todos os enormes ganhos de mercado e lucros corporativos, os lucros com o boom dos mercados financeiros e o aumento de 110% no produto interno bruto nos últimos 30 anos? Eles foram para aqueles que sempre tiveram mais do que o suficiente.
Enquanto 90% dos americanos viram ganhos apenas modestos em suas rendas desde 1973, as rendas quase triplicaram para as pessoas no topo da pirâmide. Em 1979, um terço dos lucros produzidos pelo país foi para o 1% mais rico da sociedade americana. Hoje são quase 60%. Em 1950, um presidente-executivo corporativo ganhava 30 vezes mais que um trabalhador comum. Hoje ele ganha 300 vezes mais. E hoje, 1% dos americanos é dono de 37% do total da riqueza nacional.
A desigualdade de renda nos Estados Unidos é muito maior hoje do que desde os anos 20, exceto que até agora quase ninguém se importava.
Pouca chance do sonho americano
Nos Estados Unidos, o livre mercado é rei e as pessoas de baixa renda têm apenas a si mesmas para culpar. Aqueles que ganham muito dinheiro são aplaudidos – e copiados. O único problema é que os americanos há muito ignoram o fato de que o Sonho Americano estava se tornando uma realidade para cada vez menos pessoas.
Estatisticamente, os americanos mais pobres têm uma chance de 4% de ingressarem na classe média alta – um número menor do que em quase metade dos países industrializados.
Até o momento, os políticos fracassaram em apresentar soluções para a crescente crise social. Washington ainda está aguardando por empregos que não estão aparecendo. O presidente Barack Obama e seu governo parecem estar depositando suas esperanças na noção de que os americanos no final se reerguerão por meio de iniciativa própria – preferivelmente fazendo o mesmo que sempre fizeram: consumindo. O consumo doméstico é responsável por dois terços do produto econômico americano.
Mas apesar do presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano), Ben Bernanke, continuar injetando dinheiro no mercado, e apesar do déficit do governo já ter atingido o nível vertiginoso de US$ 1,4 trilhão, esses esforços permanecem malsucedidos.
“As luzes estão apagando por toda a América”, escreveu na semana passada o ganhador do Nobel de economia, Paul Krugman, descrevendo comunidades que nem mais conseguem arcar com a despesa de manter suas ruas.
O problema é que muitos americanos não podem mais gastar dinheiro em produtos de consumo, porque eles não têm economias. Em alguns casos, suas casas perderam metade de seu valor. Eles não mais se qualificam a empréstimos a juros baixos. Eles estão ganhando menos do que antes ou estão desempregados. Isto, por sua vez, reduz ou elimina sua capacidade de pagar impostos.
Apagando as luzes
Como resultado, muitos governos estaduais e prefeituras estão com enormes déficits orçamentários. No Havaí, por exemplo, as escolas estão fechando em algumas sextas-feiras para economizar dinheiro do Estado. Um condado na Geórgia eliminou todos os serviços públicos de ônibus. Colorado Springs, uma cidade de 380 mil habitantes, desligou um terço de seus postes de iluminação para economizar eletricidade.
Há muitas discrepâncias nos Estados Unidos após a crise financeira. De um lado, o Fed está imprimindo dinheiro constantemente e o governo gastou US$ 182 bilhões para resgatar uma só empresa, a seguradora AIG. Por outro, as luzes estão de fato apagando em algumas áreas, porque Washington, citando a necessidade de reduzir gastos, não está disposto a fornecer ajuda financeira aos governos locais. “A América está atualmente na estrada não pavimentada, sem luz, para lugar nenhum”, alerta o economista Krugman.
Chanelle Sabedra já está nessa estrada. Ela e seu marido dormiram em seu carro por três semanas. “Nós nunca imaginávamos que isso aconteceria, nunca”, diz Sabedra. Ela começa a chorar. “Eu sou uma adulta, eu posso cuidar de mim mesma de uma forma ou de outra, e meu marido também, mas meus filhos são pequenos demais para passar por essas coisas.” Sem condições de continuar pagando o aluguel, os Sabedra foram despejados de sua casa em agosto.
Amigos e parentes tinham poucos recursos para ajudá-los. Agora eles vivem em um quarto no abrigo de moradores de rua do Exército da Salvação, no centro de Ventura, que é dirigido pelo capitão Finley.
A queda repentina para moradores de rua é uma realidade difícil de entender, dada as imagens dos Estados Unidos que estamos acostumados a ver nas séries de televisão e filmes. Elas sempre descrevem lares com jardins bem cuidados e dois carros na garagem, com cestas de basquete penduradas sobre a entrada. Essa América ainda existe, mas está encolhendo. E frequentemente aqueles que estão conseguindo manter a ilusão viva têm dificuldade para fazê-lo.
Os americanos estão lutando com um aumento do custo de vida nos últimos 20 anos. No início da década, as famílias já estavam pagando o dobro pelos planos de saúde e hipotecas do que a geração anterior.
“Para lidar, milhões de famílias colocaram os dois pais na força de trabalho”, diz a professora de Harvard, Elizabeth Warren, que foi nomeada pelo presidente Obama para presidir o painel do Congresso para supervisão do programa do governo de resgate aos bancos. Segundo Warren, a família média gastou toda sua renda e gastou todas suas economias “apenas para se manter mais um pouco à tona”.
Dívida crescente
Por carecerem de economias, os americanos começaram a tomar empréstimos para cobrir todas as suas outras despesas, incluindo educação, saúde e consumo. A dívida do consumidor americano atualmente totaliza cerca de US$ 13,5 trilhões.
Muitas pessoas correm o risco de sufocar sob o peso de sua dívida. Aproximadamente 61% dos americanos não têm reservas financeiras e estão vivendo de contracheque a contracheque. Basta uma única conta hospitalar para levar à ruína financeira.
O marido de Chanelle Sabedra encontrou outro emprego, desta vez como funcionário de depósito de uma empresa que produz turbinas para aviões. Mas ele não ganha o suficiente para tirar sua família do abrigo de moradores de rua. “Eu ainda não consegui um novo emprego”, diz Sabedra. O emprego de seu marido não paga o suficiente e o casal agora ingressou nas fileiras de trabalhadores pobres, para quem até dois empregos mal remunerados são insuficientes para alimentar suas famílias. “Nós precisamos de uma segunda renda”, diz Sabedra. “Só a creche do bebê custa US$ 600 por mês por meio dia.”
Nos Estados Unidos pré-recessão, ela e seu marido tinham dois empregos cada para arcar com as despesas. Eles trabalhavam como caixas no Wal-Mart durante o dia e fritavam hambúrgueres no McDonalds ao anoitecer, além de que às vezes passavam metade da noite trabalhando como vigias noturnos ou realizando a limpeza de prédios. Todos eram empregos mal remunerados, longe de serem carreiras, mas a renda somada bastava para manter a família à tona. Nos Estados Unidos pré-recessão, a vida não era luxuosa para Chanelle Sabedra, mas dava para levar se eles estivessem dispostos a trabalhar arduamente e sacrificar o suficiente para permanecer à tona.
Que tipo de emprego ela está procurando agora? “Por qualquer coisa. Em geral estou procurando no varejo, qualquer coisa para começar, mas no momento não há nada”, diz Sabedra.
Tradução: George El Khouri Andolfato