Suprimir o debate de ideias é suprimir a própria essência da democracia do movimento
Na última edição do Opinião Socialista, abrimos uma polêmica com o chamado Black Bloc, ou seja, com a tática adotada por um setor de manifestantes de promover a destruição de símbolos do capitalismo, como vitrines de bancos e grandes empresas. Muitos ativistas se surpreenderam com o artigo porque, até agora, nenhuma organização tinha ousado criticar publicamente a tática, como se o fato de os blackblockers estarem muitas vezes à frente dos confrontos ou serem perseguidos pela polícia os eximisse da crítica política.
Nós, ao contrário, consideramos que o debate aberto das diferenças, acompanhado da lealdade na luta e solidariedade mútua frente à repressão, sempre foi parte das tradições do movimento operário e socialista, tradição essa que nós reivindicamos (e, também, da tradição anarquista, reivindicada por muitos blackblockers). Não vemos nenhum motivo para que esse critério não seja aplicado também neste caso. Suprimir o debate de ideias é suprimir a própria essência da democracia do movimento. Mas voltaremos a esse tema mais adiante.
De uma forma ou de outra, a polêmica foi aberta. Desde então, novos argumentos surgiram. Analisemos alguns deles.
Não à criminalização do Black Bloc
Antes de tudo, comecemos por reafirmar o básico: somos contra a criminalização de qualquer movimento social, ativista ou organização. Desde o início dos protestos, temos defendido, incondicionalmente, todo e qualquer manifestante da repressão policial. A CSP-Conlutas, por exemplo, onde atuam os sindicalistas do PSTU, garantiu a presença de advogados nas grandes delegacias de São Paulo e do Rio de Janeiro durante os principais protestos. Esses advogados conseguiram não poucos habeas corpus para os presos políticos de Cabral e de Alckmin.
O PSTU tem como princípio a defesa incondicional dos movimentos sociais frente à repressão da polícia e do Estado, independentemente de possuir acordo político com as organizações e ativistas perseguidos. Coerente com isso, estamos absolutamente contra a repressão e a prisão, sob qualquer justificativa, de membros do Black Bloc, assim como de qualquer outro ativista dos movimentos sociais, sejam anarquistas, sejam petistas, adeptos de ações de vanguarda ou ativistas de uma greve.
Essa ideia básica precisa ser reafirmada porque, infelizmente, muitas organizações e ativistas perderam esse reflexo elementar. Um triste exemplo disso foi a declaração de Marcelo Freixo, do PSOL, que, no dia 18 de julho, em entrevista ao jornal O Dia, disse:“Não dá para concordar com quebra-quebra, é claro que a polícia tem que prender quem estiver depredando o patrimônio público ou privado. A polícia tem que agir dentro do que a lei determina.”
A exigência de que a polícia prenda manifestantes, seja pelo motivo que for, vinda de uma importante figura do PSOL, é um desserviço completo ao movimento e favorece a criminalização das lutas. O Estado vigente busca a proteção e a manutenção da democracia burguesa e da propriedade privada, utilizando, para isso, serviços de segurança que deveriam estar a serviço da população.
Sobre esse aspecto em específico, estamos de acordo com o que muitos ativistas têm afirmado: que os crimes cometidos pelos bancos e grandes empresas são muito mais graves do que a destruição de algumas vitrines. Que se prenda, portanto, os banqueiros, não os blackblockers.
Outro exemplo, ainda mais grave, de ruptura com um princípio tão caro aos movimentos sociais, partiu de um militante da CTB, central ligada ao PCdoB, no Rio de Janeiro. No dia 11 de julho, na manifestação unitária do dia de paralisações e greves das centrais sindicais, um ativista Black Bloc foi agarrado e entregue à polícia, numa ação de fazer inveja a qualquer P2 (policial infiltrado).
Ações como essas devem ser condenadas veementemente pelo conjunto dos movimentos sociais, para consolidar, na vanguarda e nos fóruns do movimento, o princípio de que, independentemente das diferenças entre organizações e ativistas, poderemos contar uns com os outros contra a repressão policial.
O que realmente está em discussão?
Mas a defesa dos lutadores frente à repressão de nenhuma maneira pode se confundir com o apoio político às ações e à ideologia dos Black Bloc. Quando o PSTU se pronuncia contrário às bases ideológicas do movimento ou contra determinadas ações do grupo, não significa que concordamos com a campanha difamatória da grande mídia ou com a repressão policial.
Queremos discutir com os Black Bloc, pois, em nossa opinião, sua estratégia está equivocada. É um debate que não pode ser feito de outra forma que não seja pública, fraterna e aberta.
O debate é que, tendo surgido como uma tática defensiva contra as desocupações urbanas na Alemanha, nos anos 1980, os Black Bloc se transformaram numa estratégia em si mesma, descolada do movimento de massas, desligada de sua consciência, de seus mecanismos e de sua vontade. Tornaram-se uma ação autocentrada, que tem sempre um único e mesmo objetivo, independentemente da situação concreta e da correlação de forças: destruir símbolos do capitalismo, causando-lhes prejuízos financeiros.
Em recente entrevista à revista Carta Capital, um ativista blackblocker declarou: “Nossa sociedade vive permeada por símbolos (...). Participar de um Black Bloc é fazer uso desses símbolos para quebrar pré-conceitos e condicionamentos”. E mais adiante: “a estratégia Black Bloc é uma estratégia performática antes de tudo.” Ou seja, o objetivo dos Black Bloc é realizar sua performance independentemente da vontade e disposição das massas. Seu critério não é se sua ação atrai ou afasta os trabalhadores do movimento; se facilita ou dificulta o trabalho da grande imprensa em jogar o povo contra o movimento, ou se cria a justificativa, perante a população, para a repressão policial.
Evidentemente não estamos dizendo que a polícia reprime as mobilizações por causa da ação dos Black Bloc. A polícia é parte do aparato repressivo do Estado burguês e é da sua natureza reprimir as manifestações. O que estamos dizendo é que a polícia, os governos e a imprensa burguesa utilizam as ações dos blackblockers como mais uma justificativa para essa repressão.
Em nossa opinião, a principal tarefa da vanguarda hoje é massificar as manifestações de rua, dar a elas uma orientação política clara contra os governos e contra o capitalismo, levar a mobilização para dentro dos locais de trabalho e impulsionar os organismos democráticos do movimento (como a Assembleia Popular Horizontal de BH, o Bloco de Lutas de Porto Alegre e o Fórum de Lutas do Rio).
Como lutar contra o capital?
Os blackblockers afirmam que suas ações são direcionadas contra o sistema capitalista. Num manifesto publicado na internet lemos: “Acreditamos que a forma mais eficaz de atingir grandes corporações dá-se no âmbito financeiro. Daí o caráter hostil de nossas ações contra multinacionais e semelhantes” (Manifesto Black Bloc). Ou então: “Um dos objetivos do Black Bloc sempre foi promover grandes prejuízos financeiros às empresas identificadas com o sistema capitalista” (Revista Mortal).
Estas frases parecem muito radicais, mas na verdade são muito moderadas. A luta contra a burguesia não é uma luta para causar-lhe prejuízos financeiros, mas para eliminá-la enquanto classe, para arrancar de suas mãos toda a riqueza que possui, abolir o lucro e colocar o potencial produtivo das empresas nacionalizadas a serviço do bem comum. Ou seja, a luta pelo socialismo. Essa luta, por sua enorme dimensão e pelos inimigos que enfrenta, só pode ser uma luta de massas, uma verdadeira revolução. A mera destruição da propriedade pode ser uma forma de expressar o ódio ao sistema, mas sua eficácia na luta contra o Capital é nula.
Ações de vanguarda a serviço da mobilização das massas
Como condenamos as ações isoladas de vanguarda, muitos companheiros concluem, erroneamente, que o PSTU teria uma posição passiva em relação às massas. Vamos ficar sentados esperando?, perguntam. Não, respondemos. Somos a favor de que a vanguarda realize ações e atue corajosa e praticamente. Com uma única condição: que cada ação da vanguarda sirva para aproximar as massas do movimento e atraí-las. Nunca afastá-las.
A vanguarda combativa e consciente pode e deve atuar: realizar atos, passeatas (mesmo que pequenas!), ir para a porta das fábricas e das escolas convocar e agitar, promover campanhas, divulgar denúncias etc. Mas, tudo isso deve ser feito para se aproximar cada vez mais das massas, captar seus anseios, esclarecer suas confusões, imputar-lhes coragem e confiança em suas próprias forças.
O que condenamos, portanto, não são as ações de vanguarda em geral, mas uma ação muito específica: a tentativa, por parte de setores de vanguarda, de substituir as massas naquelas tarefas que só podem ser cumpridas pelas próprias massas.
A polêmica pública ajuda a repressão?
A afirmação de que, ao invés de criticar a tática dos Black Bloc, o PSTU deveria criticar a ação da polícia e do governo não faz o menor sentido. Em primeiro lugar, porque nunca deixamos de combater a polícia e o governo. Em segundo, porque a luta contra essas instituições não elimina a necessidade de crítica a um setor do próprio movimento, que é feita por razões completamente distintas.
A visão de que o debate de ideias ajuda a repressão, essa, sim, é uma ideia prejudicial ao movimento. Cria figuras ou organizações supostamente intocáveis, que nunca podem ser criticadas politicamente porque são perseguidas.
Ora, a repressão pode obrigar todos nós a lutarmos juntos, ombro a ombro (e com frequência obriga), mas jamais deve ser usada como argumento para forçar o alinhamento político.
Além disso, será mesmo verdade que a imprensa e o governo precisam das polêmicas internas do movimento para atacá-lo? Pensamos que não. Ao contrário: a demonstração pública de que, em nosso movimento, resolvemos nossas diferenças de forma democrática e através do debate é um ótimo cala-boca à imprensa, que tenta nos passar a pecha de terroristas, baderneiros e antidemocráticos.
O que queremos com a crítica aos Black Bloc?
Alguns companheiros nos acusam de tentar desmoralizar os blackblockers. Isso não é verdade. O que queremos, ao contrário, é justamente evitar a desmoralização de jovens muitas vezes sinceros e aguerridos, dispostos aos mais duros combates, mas que não têm estratégia nem programa.
Queremos evitar, a todo o custo, que eles olhem mais tarde com desprezo para a classe trabalhadora, se ressintam de que ela não entendeu suas ações valentes, não se levantou em sua defesa e, então, abandonem a luta. Ao longo da história, não foram poucos os lutadores que se perderam por este rumo. Eram sempre os mais valiosos, os mais corajosos, mas também os mais impacientes.
Outros companheiros se surpreenderam com a polêmica que abrimos. E nós nos surpreendemos com a sua surpresa porque lembramos de nossa própria história. Surgimos, como organização, em meados dos anos 1970, no auge da luta armada. Nosso primeiro documento público foi um pequeno artigo intitulado “A propósito de um sequestro”, uma dura crítica política às organizações guerrilheiras, heroicas em suas ações, mas afastadas da vida real e das pequenas lutas da classe trabalhadora, a única força potencialmente capaz de derrubar a ditadura naquele momento. Não foi uma polêmica fácil.
Alguns anos mais tarde, quando todas as organizações guerrilheiras já se encontravam destruídas e seus líderes mortos ou exilados, as greves operárias do ABC colocaram os militares em xeque, e a história nos deu razão. Seria prudente não esquecer esse tipo de lição que o passado nos oferece gratuitamente e em abundância.
Sim, nosso projeto tem pressa, ele sempre teve pressa. Mas a história não constrói atalhos. E o movimento de massas e sua vanguarda não podem vencer nutridos do autoengano.
Eis, em resumo, o sentido de toda a discussão.