Por: Valerio Arcary, colunista do Esquerda Online
Os profetas anarquistas da “propaganda pelos fatos” podem falar até pelos cotovelos sobre a influência estimulante que exercem os atos terroristas sobre as massas. As considerações teóricas e a experiência política demonstram o contrário. Quanto mais “efetivos” forem os atos terroristas, quanto maior for seu impacto, quanto mais se concentra a atenção das massas sobre eles, mais se reduz o interesse das massas por eles , mais se reduz o interesse das massas em organizar-se e educar-se. Porém a fumaça da explosão se dissipa, o pânico desaparece, um sucessor ocupa o lugar do ministro assassinado, a vida volta à sua velha rotina, a roda da exploração capitalista gira como antes: só a repressão policial se torna mais selvagem e aberta. O resultado é que o lugar das esperanças renovadas e da excitação artificialmente provocada vem a ser ocupado pela desilusão e a apatia. – Leon Trotsky
Foi somente há quatro anos. Mas, parece que foi há muito mais tempo. Porque estes últimos quatro anos estiveram entre os mais intensos, em contraste com as duas décadas anteriores, entre 1993 e 2013, em que prevaleceu a estabilização do regime democrático presidencial, inclusive com a alternância eleitoral entre PSDB e PT. Junho de 2013 precipitou uma oportunidade de mudança. Abriu uma brecha, e isso foi grandioso. Depois, a oportunidade se perdeu, por variadas razões, e isso foi triste.
No calor dos acontecimentos três campos se definiram: (a) de um lado, as forças que defendiam o caminho da continuidade das mobilizações de Junho com dois desdobramentos, o fortalecimento da auto-organização juvenil-popular, e a união com o movimento operário organizado, e trabalharam pela proposta de um dia de greve geral em 11 de julho, e 30 de agosto; (b) de outro lado, os que se alinharam com a fórmula da Constituinte Exclusiva pela Reforma Política, formulada pelo governo Dilma; (c) por último, mas não menos importante, aqueles que se entusiasmaram com as iniciativas da tática dos Black Blocs, e a agitação por atos de destruição simbólica.
Quatro anos depois não deve nos surpreender que a disputa ideológica sobre o significado de Junho de 2013 permaneça aberta. Surgiram várias hipóteses de interpretação. Elas se dividem, em primeiro lugar, em dois grandes campos de análise que são incompatíveis.
De um lado estão aqueles que compreendem as mobilizações entre março de 2015/16 como herdeiras de uma onda conservadora que já teria se manifestado em Junho de 2013. Essa tem sido uma narrativa construída em defesa do balanço dos doze anos de governos liderados pelo PT e do lulismo.
Como todo discurso ideológico funcional, ou seja, que ambiciona credibilidade, este tem um grão de verdade. Aconteceu um giro reacionário da classe média entre 2013 e 2015. Em alguns momentos de junho de 2013, pela primeira vez, desde o fim da ditadura militar, núcleos fascistas desceram às ruas, e conseguiram uma audiência importante contra a esquerda, em geral, e o PT, em particular. O auge deste conflito foi o assalto contra as bandeiras vermelhas. Estes episódios antecipavam o que aconteceu, dois anos depois, em março de 2015/16: uma avalanche de classe média nas ruas, inspirado na LavaJato, exigindo a derrubada do governo liderado pelo PT que culminou com o golpe parlamentar do impeachment de Dilma Rousseff. Mas esta interpretação é unilateral.
Do outro lado, aqueles que rejeitam este fio de explicação. Ou seja, aqueles que não concordam que a ideia de uma continuidade, ou de uma sequência ininterrupta entre os dois processos seja a chave de interpretação. Entre a explosão popular de mal estar social popular que se expressou nas ruas em junho de 2013, e a fúria ressentida de setores da classe média engajados em uma campanha para derrubar Dilma Rousseff, com programa de ajuste fiscal, e direção reacionária, existiu uma mudança na situação política.
Nem o impulso, nem a potência, nem a organização, nem os sujeitos sociais das marchas de 2015/16 foram os mesmos de 2013. Mas, a diferença mais importante é que Março de 2015/16 tinha uma organização política (MBL, Vem para a Rua, Revoltados online), e um programa reacionário de luta pelo poder.
Junho de 2013 colocou em movimento, na escala de muitos milhões, em centenas de cidades, uma nova geração de trabalhadores e jovens que reclamavam por direitos: queriam mais verbas para o financiamento do transporte público, da educação pública, da saúde pública, e se manifestavam contra o gigantismo das obras dos estádios para a Copa do Mundo e Olimpíadas, ou seja, contra a corrupção.
A grandeza de Junho não merece ser diminuída. Milhões de pessoas em quatro centenas de cidades, com manifestações de rua de exuberante radicalidade, foi algo magnífico e inusitado. Junho teve como impulso a luta contras o aumento das passagens nos transportes públicos, portanto, a pressão da inflação. Teve como alicerce, no início, a iniciativa do MPL (Movimento pelo Passe Livre), porém, agigantou-se, espontaneamente, em manifestações por direitos sociais, de norte a sul. Em muitas cidades superou a grandiosidade das Diretas Já de 1984.
Terminou se dispersando pela acefalia: a ausência de um projeto, de um programa e uma direção. Teve um protagonismo, majoritariamente, proletário e popular, embora a classe média tenha descido, também, às ruas. Foi expressão de uma espontaneidade autêntica que só as mobilizações que encontram eco profundo na consciência de milhões pode alcançar. Mas sobre as debilidades de Junho não surgiu um consenso na vanguarda ampla que esteve à frente da convocação através das redes sociais na internet. Esta acefalia relativa foi expressão da força de Junho, mas também da sua fraqueza. Não existiu organização à altura da mobilização durante as semanas de lutas que Junho abriu. Tampouco depois se conseguiu avançar em organização independente. Se refletirmos em perspectiva histórica, esta debilidade parece significativa. As principais mobilizações políticas do século XX em escala mundial, especialmente as urbanas, conheceram as mais variadas formas de auto-organização desde o início. Em junho nasceram experiências fantásticas de assembleias de ativistas no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e Porto Alegre, mas foram fugazes.
A maior fragilidade de junho é que não deu origem a novas organizações, superiores às existentes. Fortaleceu as existentes, é verdade. Mas não aconteceu um processo qualitativo na reorganização dos movimentos, que vem desde 2003/04. O que a história das lutas populares sugere é que sem organização não é possível avançar na luta por um programa.
Pela primeira vez, desde os anos oitenta, uma manifestação popular não reconheceu autoridade na direção do PT e da CUT. Lula não apareceu em nenhuma oportunidade, nem expressou qualquer opinião. Porque uma parte do imenso mal estar social se dirigia, também, contra os governos municipais (como em São Paulo) estaduais, e nacional liderados pelo PT. Não foi possível à esquerda anticapitalista oferecer um ponto de apoio, suficientemente, forte para levar as mobilizações para um patamar mais elevado.
Por ultimo, não fosse bastante o balanço demolidor da experiência ao longo dos últimos quatro anos, o argumento de Trotsky na epígrafe é suficiente para ajudar a compreender o perigo da tática dos Black Blocs. A obsessão pela destruição de vitrines e ataques contra os caixas automáticos dos bancos foram o pretexto usado pelos governos para uma repressão cada vez mais violenta que teve consequências para a continuidade do movimento. Nunca saberemos em que medida exata, mas teve. Já as sequelas deixadas pela aventura substitucionista ficaram escancaradas depois do episódio da morte do cinegrafista no Rio de Janeiro em fevereiro de 2014 que, se não foram irreparáveis, foram muito graves.
Em resumo, o impulso rebelde e progressivo de Junho de 2013 foi vencido, depois do esgotamento de um semestre inteiro de mobilizações, da morte trágica do cinegrafista, e sob a pressão da iminência da Copa do Mundo.
De todo este processo resta uma lição estratégica. Na luta social quando não se avança, recua-se. Foi a derrota de Junho de 2013 que abriu o caminho para Março de 2015/16.