22 junho 2014

Cartilha divulga dados sobre os gastos da Copa no Brasil – a mais cara da história!



Qual o custo da Copa no Brasil? De onde vem esse dinheiro? Quem se beneficia? Afinal, para quem é a Copa? As respostas para estes questionamentos motivaram a criação da cartilha “Copa Para Quem”, que foi lançada no último dia 3 de maio durante o Encontro dos Atingidos pelos Megaeventos e Megaempreendimentos, em Belo Horizonte-MG.
A cartilha mostra claramente os gastos exorbitantes que estão sendo efetuados nas doze cidade-sede da Copa, evidenciando o envolvimento dos estados com gastos públicos que bem poderiam ser empregados em outras necessidades mais urgentes no país.
A publicação também denuncia violações aos direitos da cidadania promovidos pela Lei Geral da Copa. Durante todo o período do mundial, o país viverá um estado de exceção.
De acordo com os dados, o Brasil sediará uma das Copas mais caras de todos os tempos. A Copa do Japão e da Coréia (2002) custou 4,6 bilhões de dólares; a da Alemanha (2006), 3,7 bilhões de euros; e a da África do Sul (2010), US$ 3,5 bilhões. Estimativas, em 2007, já apontavam que o Brasil faria a Copa mais cara da história com um orçamento de US$ 6 bilhões, que na época equivaliam a R$ 10,6 bilhões. Em janeiro de 2010, o Ministério do Esporte estimou o gasto total com a Copa em R$ 20,1 bilhões. Em 2014, a estimativa é que esses gastos aumentaram significativamente.
Pesa ainda sobre o megaevento esportivo o descontentamento da população brasileira. Uma pesquisa realizada em fevereiro deste ano, pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT) apontou que somente 26,1% dos brasileiros apoiavam a Copa.
Além disso, desde que o Brasil foi anunciado como país para sediar o megaevento foram várias as violações registradas contra a população até osdias de hoje. Remoções forçadas, higienização” social, proibição do trabalho de ambulantes, uso de força policial em manifestações, criminalização dos movimentos sociais, exploração de mão de obra, entre outras.
Para o historiador Miguel Borba de Sá, um dos responsáveis pela escrita e revisão da cartilha, a publicação é um importante instrumento de denúncia sobre a forma como a Copa do Mundo está sendo utilizada para aprofundar um modelo de desenvolvimento elitista e violador de direitos na sociedade brasileira.
Borba destaca ainda que o material traz questões do ponto de vistaeconômico, mostrando que os gastos públicos com a Copa são de fato gigantescos, mas os beneficiários são apenas alguns poucos – e poderosos – grupos privados.
Ele diz que a cartilha serve para desmascarar a ideia de que os megaeventos deixam um legado sócioeconômico positivo para o país, mostrando que a maioria da população pobre e trabalhadora já vem arcando com um fardo econômico ainda maior em função da Copa e Olimpíadas, devido à concentração de capital e redirecionamentos orçamentários.
Em um momento em que o governo se esforça para convencer que os gastos foram pequenos e também lança cartilhas, os movimentos sociais precisam de um instrumento que ajude a enfrentar a propaganda oficial e exigir a transformação desse modelo, comentou.
A publicação do texto foi feita com tiragem de 10 mil exemplares pela Rede Jubileu Sul - Brasil. Baixe aqui a versão para leitura ou, ainda, leia aqui no modo de visualização dinâmica para web.


16 junho 2014

Quem vai lucrar com a Copa?


No dia 30 de outubro de 2007, quando a Fifa anunciou de maneira oficial o Brasil como sede da Copa de 2014, o Estado brasileiro assinou um contrato com uma das mais corruptas organizações em atividade no mundo. A comitiva enviada a Zurique, Suíça, para firmar esse pacto, demonstrou o compromisso dos capitalistas brasileiros com o evento e afastou, desde o início, qualquer pretensão de popularizar o campeonato. Lá estavam, além do presidente Lula, dois candidatos a presidente da velha e da nova direita: Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB). Estavam também José Serra e José Roberto Arruda, o primeiro investigado por corrupção no metrô de São Paulo e o segundo, filmado e provado como corrupto, foi expulso do Governo do Distrito Federal anos depois.
Estavam acompanhados de Ricardo Teixeira (ex-presidente da CBF) e Nicolás Leoz (ex-presidente da Conmebol), ambos afastados das presidências dessas entidades e dos cargos de membros da Fifa após provadas acusações de que receberam propina na escolha das sedes da Copa e de que participaram de fraude nos contratos de publicidade com a empresa ISL, juntamente com João Havelange, o brasileiro ex-presidente da Fifa.
Da descrição dos personagens podemos prever o roteiro da história. A Copa da Fifa é, no Brasil – assim como foi em todos os países onde se realizou até hoje –, um conluio da classe capitalista nacional einternacional com uma organização mafiosa que controla os clubes e federações de futebol. Uma festa onde o povo é convidado a assistir de fora, enquanto eles roubam na construção dos estádios, na venda de ingressos, pacotes turísticos e contratos publicitários.
Empreiteiras lucraram milhões com obras
Logo o Governo Federal anunciou as obras que seriam necessárias para receber a Copa. Em todas as 12 cidades-sedes foram construídos ou completamente reformados novos estádios.
Até mesmo o Estádio do Maracanã, que, há poucos anos, foi reconstruído para a realização dos Jogos Pan-Americanos, foi de novo reconstruído pelo custo de R$ 1,2 bilhão. As empreiteiras (Odebrecht, Camargo Correa, OAS, Andrade Gutiérrez, etc.) ficaram muito felizes.
Ao todo foram gastos R$ 8,32 bilhões na construção de estádios, R$ 2,28 bilhões a mais do que estava inicialmente previsto nos orçamentos. É de destacar o caso do Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Com custo inicial previsto de R$ 745 milhões, as verbas para o estádio tiveram um aumento de 110%, passando o valor inicial a R$ 1,56 bilhão, o que transformou o Mané Garricha numa das praças de esportes mais caras do mundo. E, como na maioria dos estádios da Copa, as obras do entorno estão atrasadas.
As empreiteiras souberam retribuir a gentileza. Apesar de 2013 não ser ano eleitoral, esse foi o ano em que as empreiteiras mais doaram dinheiro aos partidos políticos no Governo. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o PT recebeu, no ano passado, R$ 79,8 milhões de empresas privadas, sendo 65% desse dinheiro oriundo de empreiteiras. Partidos que controlam os governos estaduais também receberam sua parte: R$ 20,4 milhões para o PSDB (86% de empreiteiras), R$ 17,7 milhões para o PMDB (71% de empreiteiras) e R$ 8,3 milhões para o PSB (88% de empreiteiras).
Das 149 obras previstas no plano inicial da Copa, 39 eram relacionadas à segurança, e essas estão quase todas concluídas, o que mostra que a prioridade é mesmo o aumento da repressão. Outras 42 obras estavam relacionadas à ampliação e reforma de portos e aeroportos; como sabemos, os recursos públicos investidos nessas obras servirão ao lucro de empresas privadas, já que os portos e aeroportos estão sendo privatizados através do regime de concessão.
Para o principal problema das grandes cidades, a mobilidade urbana, foram planejadas 65 obras, mas destas apenas 26 tratavam da construção de vias de ônibus BRT, Veículos Leves sobre Trilhos (VLT) e metrô – ou seja, obras que, de fato, atacam o problema do transporte coletivo. Dessas, 10 obras foram abandonadas (quase a metade) e várias estão atrasadas.
Todos esses números servem para provar que o objetivo das obras da Copa não é deixar nenhum legado de benefício para o povo, mas sim enriquecer as empreiteiras e concessionárias privadas.
O roteiro de realização da Copa em um país se repete a cada quatro anos, no fundamental, da mesma maneira desde a década de 1970, quando a Fifa se transformou em uma máfia internacional sob o comando de João Havelange.
Como denunciou o jornalista Andrew Jennings em seu livro Um jogo cada vez mais sujo (recém-lançado no último mês de maio)um determinado país é escolhido ao custo de muita propina paga aos membros das confederações continentais. Depois disso, anuncia-se que a Copa gerará um grande legado, muitas obras edesenvolvimento econômico com quase nenhum dinheiro público gasto. Passam-se os anos, e os membros da Fifa (Joseph Blatter e Jerôme Valcke) visitam o país para fazer críticas públicas sobre o atraso nas obras, pressionando o Governo a gastar dinheiro do povo com o evento. Foi assim na Alemanha, em 2006, na África do Sul, em 2010, e não poderia ter sido diferente no Brasil.
A Copa do trabalho precário e da prostituição
Todos os operários mortos em obras dos estádios da Copa trabalhavam em empresas terceirizadas, em regime de trabalho que, muitas vezes, superava as 10 horas diárias, como revelou a investigação do Ministério do Trabalho após os desabamentos no estádio em Itaquera. Terceirizar a mão de obra foi a forma encontrada pelas grandes empreiteiras para não assumir a responsabilidade pelo sangue de trabalhadores derramado em vários estádios.
Em setembro de 2013, fiscais do Ministério do Trabalho encontraram 111 trabalhadores em situação de escravidão nas obras de ampliação do Aeroporto de Guarulhos, o maior do Brasil. Eles foram aliciados nos Estados do Maranhão, Sergipe, Bahia e Pernambuco, e ficaram alojados em situação degradante nos arredores de Cumbica. A obra é de responsabilidade da empreiteira OAS, mas a empresa transferiu para uma terceirizada a responsabilidade pela contratação desses trabalhadores.
Todos os indícios apontam também para o crescimento do turismo sexual e da prostituição, inclusive infantil, no período da Copa.
Muitas empresas de turismo vendem pacotes que incluem exploração sexual disfarçada para o público europeu. Casas de prostituição de São Paulo já anunciam seus serviços através de outdoors. Durante a Copa das Confederações, no ano passado, até os jogadores da Seleção da Espanha se envolveram em disputa com a gerência de um hotel por tentarem levar prostitutas para os quartos.
Como denunciou a agência de notícias Pública (http://apublica.org/) na reportagem Meninas em Jogo, uma rede de prostituição que existe no Ceará e tem ligações com políticos brasileiros e investidores italianos tem fortalecido sua atuação às vésperas da Copa, aliciando menores de idade nas cidades mais pobres do interior e levando-as para bordéis em Fortaleza ou lugares turísticos como Canoa Quebrada.
Nenhum centavo dos recursos da Copa, no entanto, serviu para fortalecer os conselhos tutelares ou para aplicar medidas de educação e trabalho que possam combater a prostituição infantil.
A Lei Geral da Copa ataca a soberania do País
O esquema obscuro de venda de ingressos é a forma através da qual os dirigentes da Fifa mais ganham dinheiro. Milhares de ingressos são vendidos de maneira casada na Europa, inflacionando os preços de hospedagem e transporte. Essa prática, aliás, fez ficarem vazios os estádios da África do Sul, obrigando o Governo de Pretória a comprar os ingressos que sobraram.
Já temos sofrido com uma enorme alta nos preços dos aluguéis e de praticamente todos os serviços, fruto da especulação imobiliária e dos donos de empresas nesse período que antecede a Copa.
Dessa maneira, praticamente todo o dinheiro que circula através do turismo, venda de ingressos, comércio de itens relacionados à Copa, etc., vai parar mesmo é no bolso da Fifa e dos monopólios que a patrocinam.
Com a aprovação da Lei Geral da Copa (Lei nº 12.663/12), em junho de 2012, o Congresso Nacional realizou uma das maiores ofensas à soberania do Brasil, praticamente alugando o país à Fifa.
A Lei Geral da Copa retirou o direito à meia-entrada dos estudantes (artigo 26); restringiu todo o comércio no entorno dos estádios, estabelecendo como território da Fifa essas regiões (artigo 11); impediu as transmissões públicas dos jogos em espaços não autorizados pela Fifa (artigo 16, inciso IV); tornou o Governo responsável por qualquer dano causado ao patrimônio da Fifa durante o evento (artigos 22, 23 e 24); e estabeleceu regime especial para registro de marcas em favor da Fifa, que logo registrou marcas comoBrasil 2014Natal 2014 e até Pagode. Quem queira usar esses nomes terá que pagar à Fifa (artigos 4 a 7).
Para tornar ainda mais eficaz o aparato repressivo, o Governo brasileiro contratou, no mês de março, a empresa estadunidense Blackwater para realizar treinamento com policiais brasileiros. Essa empresa de mercenários de guerra é uma das mais usadas pelo Governo dos EUA na perseguição ao povo do Iraque e Afeganistão.
Dia 12 de junho, acontece a abertura de uma Copa da Fifa na qual não temos nada a ganhar. Os trabalhadores e o povo brasileiro, no entanto, conseguiram marcar um gol de placa que servirá para mudar o resultado no decorrer da partida que vamos continuar jogando.
Foi um gol convertido por centroavantes como os garis do Rio de Janeiro, do ABC Paulista e de outros estados. Por atacantes como os rodoviários de Porto Alegre e do Rio de Janeiro. Um gol preparado por meias-armadores como as famílias da ocupação Eliana Silva (Belo Horizonte), da ocupação Copa do Povo (São Paulo) e da Telerj (Rio de Janeiro). Ajudaram na armação da jogada os volantes da juventude rebelde e do movimento estudantil, que ocupam as ruas desde junho do ano passado.
Ao marcar esse gol, passamos a viver um novo momento na partida por um Brasil justo e soberano. Nosso time está ocupando o campo de ataque e tem mais consciência da sua força e capacidade de vencer. É o momento de avançarmos ainda mais e mostramos que é possível virar esse jogo.
Sandino Patriota, São Paulo

08 junho 2014

As ilegalidades cometidas contra o direito de greve: o caso dos metroviários de São Paulo.

Artigo originalmente publicado do Blog da Boitempo

Tropa de Choque investe contra metroviários em greve
Tem-se assistido nos últimos meses, em âmbito nacional, um ataque generalizado contra as greves, fundado no argumento do respeito à legalidade. Mas, o que tem havido, juridicamente falando, é a negação do direito de greve tal qual insculpido na Constituição Federal:
Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
Verdade que a própria Constituição prevê que “a lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade” (§ 1º.) e que “os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei”.
É óbvio, no entanto, que essas especificações atribuídas à lei não podem ser postas em um plano de maior relevância que o próprio exercício da greve. Em outras palavras, as delimitações legais, para atender necessidades inadiáveis e para coibir abusos, não podem ir ao ponto de inibir o exercício do direito de greve.
A aversão cultural à greve, difundida por setores da grande mídia, infelizmente invadiu o próprio Poder Judiciário trabalhista, de tal modo a não permitir a percepção de que mesmo a Lei n. 7.783/89, que regulou com restrições que já seriam indevidas se considerarmos a amplitude do texto constitucional, não foi até o ponto de limitação ao qual o Judiciário tem chegado.
Vejamos, por exemplo, o caso dos metroviários de São Paulo.
Diante do anúncio da greve, deflagrada com respeito aos termos da legalidade estrita, ou seja, por meio do sindicato, mediante assembléia e comunicação prévia, de 72 (setenta e duas) horas, a entidade empregadora, Companhia do Metropolitano de São Paulo – Metrô, em vez de iniciar negociação, como determina a lei, se socorreu da via judicial, por meio de ação cautelar, para impedir a ocorrência da greve.
Essa foi, portanto, a primeira ilegalidade cometida pelo Metrô, que pode ser vista, inclusive, como ato antissindical, o que é coibido pela Convenção 98 da OIT, ratificada pelo Brasil, e já mereceria repúdio imediato do Judiciário. Lembre-se que o Brasil, mais de uma vez, foi repreendido pela OIT pela inexistência de mecanismos específicos que impeçam as práticas antissindicais, como se deu, em 2007, quando professores, dirigentes do Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES), ligados a várias universidades – Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Universidade Católica de Brasília (UCB), Faculdade do Vale do Ipojuca (FAVIP) e Faculdade de Caldas Novas (GO) – foram dispensados após participação em atividade grevista.
Indicando uma sensível mudança nesta postura do Judiciário frente ao direito de greve, é oportuno destacar a recente decisão proferida pela Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho, em ação civil pública movida pelo Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Belo Horizonte e Região (Processo n. RR 253840-90.2006.5.03.0140, Rel. Luiz Philippe Vieira de Mello Filho), que condenou alguns Bancos (ABN AMRO Real S.A., Santander Banespa S.A., Itaú S.A., União de Bancos Brasileiros S.A. – UNIBANCO, Mercantil do Brasil S.A., Bradesco S.A., HSBC Bank Brasil S.A. – Banco Múltiplo e Safra S.A) a pagarem indenização à classe trabalhadora por terem utilizado a via judicial como forma de impedir o exercício do direito de greve, o que foi caracterizado como conduta antissindical.
Segundo consta da decisão do TST: “A intenção por trás da propositura dos interditos era única e exclusivamente a de fragilizar o movimento grevista e dificultar a legítima persuasão por meio de piquetes”.
Nos casos aludidos teria havido abuso de direito das entidades patronais, ao vislumbrarem “o aparato do Estado para coibir o exercício de um direito fundamental, o direito dos trabalhadores decidirem como, por que e onde realizar greve e persuadirem seus companheiros a aderirem o movimento”.
Aliás, várias são as decisões judiciais que começam a acatar de forma mais efetiva e ampla o conceito do direito de greve, como se verificou, por exemplo, nos processos ns. 114.01.2011.011948-2 (1ª. Vara da Fazenda Pública de Campinas); 00515348420125020000 (Seção de Dissídios Coletivos do TRT2); e 1005270-72.2013.8.26.0053 (12ª. Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo).
De tais decisões extraem-se valores como o reconhecimento da legitimidade das greves de estudantes, dos métodos de luta, incluindo a ocupação, e do conteúdo político das reivindicações, decisões estas, aliás, proferidas sob o amparo de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, na qual se consagrou a noção constitucional de que a greve é destinada aos trabalhadores em geral, sem distinções, e que a estes “compete decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dela defender”, sendo fixado também o pressuposto de que mesmo a lei não pode restringir a greve, cabendo à lei, isto sim, protegê-la. Esta decisão consignou de forma cristalina que estão “constitucionalmente admissíveis todos os tipos de greve: greves reivindicatórias, greves de solidariedade, greves políticas, greves de protesto” (Mandado de Injunção 712, Min. Relator Eros Roberto Grau).
Trilhando o caminho dessa decisão, recentemente, o Min. Luiz Fux, também do STF, impôs novo avanço à compreensão do direito de greve, reformando decisão do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) no que tange ao corte de ponto dos professores da rede estadual em greve. Em sua decisão, argumentou o Ministro: “A decisão reclamada, autorizativa do governo fluminense a cortar o ponto e efetuar os descontos dos profissionais da educação estadual, desestimula e desencoraja, ainda que de forma oblíqua, a livre manifestação do direito de greve pelos servidores, verdadeira garantia fundamental” (Reclamação 16.535).
Além disso, a Justiça do Trabalho, em decisões reiteradas de primeiro e segundo graus, tem ampliado o sentido do direito de greve como sendo um “direito de causar prejuízo”, extraindo a situação de “normalidade”, com inclusão do direito ao piquete, conforme decisões proferidas na 4ª. Vara do Trabalho de Londrina (processo n. 10086-2013-663-09-00-4), no Tribunal Regional do Trabalho da 17ª. Região (processo n. 0921-2006-009-17-00-0), na Vara do Trabalho de Eunápolis/BA (processo n. 0000306-71-20130-5-05-0511), todas sob o amparo de outra recente decisão do Supremo Tribunal Federal, esta da lavra do Min. Dias Toffoli (Reclamação n. 16.337), que assegurou a competência da Justiça do Trabalho para tratar de questões que envolvem o direito de greve, nos termos da Súmula Vinculante n. 23, do STF , integrando o piquete a tal conceito.
Pois bem, voltando ao caso específico da obrigatoriedade de negociação para continuidade das atividades do empregador em caso de greve, se ainda há dúvida a respeito vejamos o que diz a lei.
Preceitua o artigo 9º da Lei n. 7.783/89 que “Durante a greve, o sindicato ou a comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com o empregador, manterá em atividade equipes de empregados com o propósito de assegurar os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da empresa quando da cessação do movimento.” – grifou-se
Resta claro, portanto, que deflagrada a greve, que é um direito dos trabalhadores, cumpre a estes e ao empregador, de comum acordo, definirem como serão realizadas as atividades inadiáveis. As responsabilidades pelo efeito da greve não podem ser atribuídas unicamente aos trabalhadores, até porque esses estão no exercício de um direito. Aos empregadores também são atribuídas responsabilidades e a primeira delas é a de abrir negociação com os trabalhadores, inclusive para definir como será dada continuidade às atividades produtivas.
Não pertence ao empregador o direito de definir sozinho como manterá em funcionamento as atividades. A manutenção das atividades do empregador, com incentivos pessoais a um pequeno número de empregados, que, individualmente, resolvem trabalhar em vez de respeitar a deliberação coletiva dos trabalhadores, constitui uma ilegalidade, uma frustração fraudulenta ao exercício legítimo do direito de greve.
Ou seja, para a lei, a tentativa do empregador de manter-se funcionando normalmente, sem negociar com os trabalhadores em greve, valendo-se das posições individualizadas dos ditos “fura-greves”, representa ato ilícito, que afronta o direito de greve.
Qualquer tipo de ameaça ao grevista ou promessa de prêmio ou promoção aos não grevistas constitui ato antissindical, tal como definido na Convenção 98 da OIT (ratificada pelo Brasil, em 1952), que justifica, até, a apresentação de queixa junto ao Comitê de Liberdade Sindical da referida Organização.
No que se refere às consideradas atividades essenciais, a lógica é exatamente a mesma. O artigo 11 da lei 7.783/89 dispõe que “Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade” (grifou-se), acrescentando o parágrafo único do mesmo artigo que “São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.
As responsabilidades quanto aos efeitos da greve atingem, portanto, igualmente, trabalhadores e empregadores. Isso implica que cumpre ao empregador iniciar negociação com os trabalhadores, coletivamente considerados, para manutenção das atividades, estando impedido de fazê-lo por conta própria, utilizando-se de trabalhadores que, por ato individual, se predisponham a continuar trabalhando, seja por vontade própria, seja por pressão do empregador, em virtude de ocuparem cargos de confiança (supervisores, por exemplo) ou por se encontrarem em situação de precariedade jurídica.
Não pode haver dúvida, portanto, de que o Metrô ao se valer da via judicial para que obtivesse decisão judicial obrigando os metroviários a manterem 100% da frota em funcionamento no horário de pico descumpriram sua obrigação legal de definirem essa questão de comum acordo com os trabalhadores, cometendo grave ato de natureza antissindical.
Cometeu ilegalidade também ao manter o funcionamento de algumas estações e alguns trens por meio da utilização dos serviços de empregados do setor administrativo e com função de supervisores, porque essa possibilidade não lhe é conferida por lei, além de se constituir descumprimento da obrigação de manter um ambiente de trabalho seguro, tendo posto em risco a vida desses trabalhadores e dos consumidores dos serviços.
Não satisfeito com o indeferimento da liminar em ação cautelar, o Metrô, mantendo a linha da ilegalidade, propôs dissídio de greve, obtendo liminar que determinou aos trabalhadores a obrigação de manter 100% do funcionamento dos trens nos horários de pico (das 6h às 9h e das 16h às 19h) e de 70% nos demais horários de operação, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00.
Ora, do ponto de vista legal, essa definição teria que ser fixada de comum acordo entre trabalhadores em greve e a entidade patronal e não pelo Judiciário, ainda mais antes de ter sido iniciada uma negociação a respeito entre as partes. Além do mais, o percentual fixado equivale, na essência, a negar a própria existência da greve, o que fere a lógica normativa.
Ainda que houvesse a iminência de um risco de grave dano à população como um todo em virtude da greve, cabia ao Judiciário chamar à responsabilidade a entidade patronal e não dar guarida à sua pretensão de utilizar a via judicial como forma de descumprir a obrigação legal da negociação quanto à forma de continuação das atividades.
Vale frisar que pelos parâmetros legais não é possível obrigar os trabalhadores retornarem ao trabalho, mesmo no caso de atividades essenciais, pois como preconizado pelo art. 12 da lei em comento, não se chegando ao comum acordo, cumpre ao Poder Público assegurar a prestação dos serviços indispensáveis.
Na linha das ilegalidades cometidas contra o direito de greve, veio o grave ataque da Polícia Militar, na sexta-feira, aos trabalhadores que exerciam o seu lídimo direito de realizar um piquete na estação Ana Rosa do metrô. Ora, como dita o art. 6º. da Lei n. 7.783/89, “são assegurados aos grevistas, dentre outros direitos: I – o emprego de meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve”.
Verdade que esse mesmo dispositivo diz que “As manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa” (§ 3º.), mas o que se pode extrair daí é a existência de um conflito de direitos, que se resolve em contenda judicial, e não pela via do “exercício arbitrário das próprias razões”, que, inclusive, constitui crime, conforme definido no art. 345, do Código Penal, sendo certo, ainda, que no conflito de direitos há que se dar prevalência ao exercício do direito de greve, pois no Direito do Trabalho a normatividade coletiva supera a individual, a não ser quando esta seja mais favorável. Recorde-se que é a partir dessas premissas que se tem entendido imprópria a interposição de interdito proibitório contra piquetes, como visto acima.
Assim, não é função da Polícia Militar intervir em conflito trabalhista e definir arbitrariamente que direito deve prevalecer, reprimindo um interesse juridicamente garantido e tratando trabalhadores como criminosos.
No caso específico do ataque feito pela “tropa de choque” da Polícia Militar aos metroviários a gravidade da ilegalidade cometida, que foi ilegal também porque feriu direitos de personalidade dos trabalhadores, já que a integridade física e moral de muitos foi concretamente atingida, ganha o gravame de ser a Polícia Militar diretamente ligada ao chefe do Poder Executivo do Estado de São Paulo, que também responde pela Companhia Metropolitano de São Paulo. Assim, o governador, que teria autorizado expressamente a operação, segundo informa a imprensa[1], utilizou, indevidamente, a força policial a serviço de um interesse próprio, dentro da esfera restrita de um conflito trabalhista com os trabalhadores do metrô, desviando a Polícia de sua função específica e cometendo um grave atentado ao direito sindical, até porque sua ordem não foi embasada em qualquer autorização judicial.
Não bastasse isso, noticia-se que o governo estadual enviou, na manhã de sábado, 220 telegramas para pressionar condutores de trens a comparecerem ao trabalho a partir das 14h[2], em mais um ato de flagrante ilegalidade, pois como dispõe o § 2º., do art. 6º. da Lei n. 7.783, “É vedado às empresas adotar meios para constranger o empregado ao comparecimento ao trabalho, bem como capazes de frustrar a divulgação do movimento”.
Como se vê, houve uma gama enorme de ilegalidades cometidas contra o direito de greve que fora regularmente exercido pelos metroviários e chega a ser surreal imaginar que em um julgamento, marcado para o domingo, o Judiciário trabalhista, deparando-se com todas essas questões fáticas e jurídicas, julgue a greve ilegal.
Ora, os trabalhadores exerceram o seu direito. O Metrô não cumpriu sua obrigação de negociar o prosseguimento das atividades, indo direto à via judicial. O Judiciário, sem instaurar negociação, ou seja, em decisão liminar, definiu a continuidade dos serviços de um modo que, em concreto, negou o exercício do direito de greve. Depois, na negociação iniciada no processo judicial instaurado, já sob o peso de uma condenação, ainda assim os trabalhadores propuseram uma solução para que a atividade essencial fosse mantida: a abertura das catracas, aceitando, inclusive, o não recebimento de salário pelo dia de trabalho. Mas, a proposta foi recusada, sob o discutível argumento de que essa solução estaria impedida pela lei de responsabilidade administrativa e não houve qualquer contraproposta, mantendo-se o Metrô sob o parâmetro já definido arbitrariamente pelo Judiciário. Além disso, o Metrô colocou estações e trens em funcionamento por pessoal não especializado, com apoio policial, sem autorização judicial para tanto. O governo estadual direcionou a Polícia Militar para coibir atividade de piquete de trabalhadores, chegando a agressões físicas e morais, e enviou telegramas aos trabalhadores, coagindo-os ao trabalho.
Foram, efetivamente, várias as ilegalidades cometidas contra os trabalhadores e ainda na perspectiva da legalidade não cumpre avaliar se o percentual de reajuste pretendido pelos metroviários (12,2%, que reflete o IGPM mais o aumento da demanda do ultimo ano – produtividade) é alto ou não, até porque a Constituição Federal garantiu aos trabalhadores os meios jurídicos para buscarem melhores condições de vida e de trabalho. Ademais, as propostas formuladas não se limitam ao aspecto econômico, trazendo, também, discussões em torno do plano de carreira, inclusive para enfrentar o “turnover” (rotatividade de pessoal). Vale lembrar que o próprio relator do processo, Desembargador Rafael Pugliese, já chegou a sugerir um percentual de 9,5%, contra os 8,7% oferecidos pelo Metrô, que foi recusado por este[3], e mesmo as propostas de plano de carreira, que não envolvem questão econômica imediata, também não foram aceitas. De fato, a dinâmica da negociação entre trabalhadores e empregadores é que vai definir as possibilidades de sucesso das respectivas pretensões, cumprindo-lhes, enquanto isso, por ato de comum acordo, garantir “a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”, acordo este que, até o momento, foi obstado pela Companhia Metropolitano de São Paulo, por intermédio da utilização de mecanismos que afrontaram vários preceitos legais.
Para preservar a autoridade da ordem jurídica, portanto, cumpre ao Judiciário garantir o direito de greve, podendo, por exemplo, autorizar, na ausência de outra proposta trazida pelo Metropolitano, a liberação das catracas como forma de garantir “a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”, até porque essa é, de fato, a vontade de 90,29% dos que responderam a pesquisa realizada pelo portal R7[4].
É essencial, ainda, que sejam reprimidas as diversas ilegalidades até aqui cometidas pela Companhia Metropolitano de São Paulo e pelo governador do Estado de São Paulo, valendo lembrar que a atitude antissindical do Metrô já se manifestou anteriormente, em 06 de agosto de 2007, quando por conta da greve ocorrida nos dias 02 e 03 de agosto, essa entidade promoveu a dispensa de 61 metroviários.
Aliás, na linha da criação de institutos de inibição de mecanismos de repressão ao direito de greve, conforme requerido pela OIT, é relevante que se passe a pensar também o quanto as condutas de certos meios de comunicação, que divulgam informações equivocadas quanto ao exercício do direito de greve, se configuram como atos antissindicais, vez que tentam deslegitimar as greves e desmoralizar os grevistas, acusando-os de estarem causando um mal à população, negando, em concreto, a greve como um direito fundamental, como de fato é segundo previsto em nossa Constituição.
Bem verdade que a população, que, na sua maior parte, cada vez mais se identifica como trabalhadora na sociedade de classes, já não se deixa mais levar pela informação massificada e desvirtuada da realidade, como demonstra o resultado da pesquisa realizada pelo portal R7[5], que aponta que 82,2% dos que responderam a pesquisa concordam com a greve dos metroviários. Mas isso não retira o caráter de ilegalidade, por se constituir conduta antissindical, em que se traduzem as propagandas midiáticas contra as greves.
São Paulo, 8 de junho de 2014
 [1]. “O secretário comentou a ação da PM na manhã desta sexta na estação Ana Rosa, quando policiais agrediram os grevistas com bombas de gás e balas de borracha. Ele disse que manteve contato com o governador Geraldo Alckmin (PSDB) e o secretário de Estado da Segurança Pública, Fernando Grella Vieira, para pedir reforço policial.
— Eu tinha exposto ao governador que havia risco hoje de situação de radicalização. Nas primeiras horas, recebi as informações de que eles ocupavam duas estações. O governador foi muito tranquilo e pediu de energia, dentro da lei.” (http://noticias.r7.com/sao-paulo/metro-envia-telegramas-para-convocar-grevistas-e-ameaca-demissoes-06062014, acesso em 07/06/14).

Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e de um dos artigos da coletânea Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (2013) e do lançamento Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas? (2014), ambas pela Coleção Tinta Vermelha, da Boitempo

06 junho 2014

Junho 2013, um ano depois: os três campos em que se dividiu a esquerda.


Valerio Arcary
“A desordem que produz um atentado terrorista nas fileiras da classe operária é muito mais profunda. Se para alcançar os objetivos basta armar-se com uma pistola, para que serve esforçar-se na luta de classes? Se um pouco de pólvora e um pedaço de chumbo bastam para perfurar a cabeça de um inimigo, que necessidade há de organizar a classe? Se tem sentido aterrorizar os altos funcionários com o ruído das explosões, que necessidade há de um partido? Para que fazer passeatas, agitação de massas, eleições, se é tão fácil alvejar um ministro desde a galeria do parlamento? Para nós o terror individual é inadmissível precisamente porque apequena o papel das massas em sua própria consciência, as faz aceitar sua impotência e volta seus olhos e esperanças para o grande vingador e libertador que algum dia virá cumprir sua missão. Os profetas anarquistas da “propaganda pelos fatos” podem falar até pelos cotovelos sobre a influência estimulante que exercem os atos terroristas sobre as massas. As considerações teóricas e a experiência política demonstram o contrário. Quanto mais “efetivos” forem os atos terroristas, quanto maior for seu impacto, quanto mais se concentra a atenção das massas sobre eles, mais se reduz o interesse das massas por eles , mais se reduz o interesse das massas em organizar-se e educar-se. Porém a fumaça da explosão se dissipa, o pânico desaparece, um sucessor ocupa o lugar do ministro assassinado, a vida volta à sua velha rotina, a roda da exploração capitalista gira como antes: só a repressão policial se torna mais selvagem e aberta. O resultado é que o lugar das esperanças renovadas e da excitação artificialmente provocada vem a ser ocupado pela desilusão e a apatia.” (Leon Trotsky. Por que os Marxistas se Opõem ao Terrorismo Individual?)
Foi no dia 6 de junho que tudo começou com a convocação pelo Movimento pelo Passe Livre de uma manifestação contra o aumento de tarifa dos ônibus em São Paulo. Um ano depois de junho de 2013 podemos ter uma percepção retrospectiva do que fez a grandeza, mas, também, a fraqueza das manifestações. E podemos avaliar melhor as diferenças que apareceram na esquerda no calor dos acontecimentos.   Três campos se definiram: (a) de um lado, as forças que defendiam o caminho da continuidade das mobilizações de Junho com dois desdobramentos, o fortalecimento da auto-organização juvenil-popular, e a união com o movimento operário organizado, e trabalharam pela proposta de um dia de greve geral em 11 de julho e 30 de agosto; (b) de outro lado, os que se alinharam com a fórmula da Constituinte Exclusiva pela Reforma Política, formulada pelo governo Dilma; (c) por último, mas não menos importante, aqueles que se entusiasmaram com as iniciativas da tática dos Black Blocs e a agitação por atos de destruição simbólica.
Não fosse bastante o balanço demolidor da experiência ao longo do último ano, o argumento de Trotsky na epígrafe é suficiente para ajudar a compreender o perigo da tática dos Black Blocs. A obcessão pela destruição de vitrines e ataques contra os caixas automáticos dos bancos foram o pretexto usado pelos governos para uma repressão cada vez mais violenta que teve consequências para a continuidade do movimento. Nunca saberemos em que medida exata, mas teve. Já as sequelas deixadas pela aventura substitucionista ficaram escancaradas depois do episódio da morte do cinegrafista no Rio de Janeiro em fevereiro que, se não foram irreparáveis, foram muito graves.
Desde fevereiro, felizmente, uma onda de lutas se iniciou com enormes ocupações como as do MTST em São Paulo, greves como a dos garis e do COMPERJ no Rio de Janeiro, rodoviários em Porto Alegre, protestos de populações indígenas diante do Congresso Nacional e, finalmente, as greve dos motoristas, professores municipais, e dos metroviários em São Paulo, entre outras. Veremos nas próximas semanas se ocorrerão ou não manifestações de massa importante durante a Copa.
Ao longo deste ano, o período aberto por Junho conheceu, portanto, diferentes conjunturas. O governo conseguiu uma recuperação relativa entre setembro e janeiro de 2014. Não seria justo dizer que esta recuperação deve ser atribuída, essencialmente, às forças que defendem a campanha pela Constituinte Exclusiva. Muitos outros fatores explicam variações na relação de forças entre as classes e as flutuações de humor entre os trabalhadores. Entretanto o que sim podemos dizer é que a campanha pela Constituinte não acumulou forças para lutar.
Isso não deveria nos surpreender. Independentemente das intenções, o destino da campanha pela Constituinte foi desviar do governo o mal estar social. E além de poupar o governo, chocou com a dinâmica de auto-organização que nasceu de Junho.  A premissa de que a delegação das decisões a “especialistas” da política escolhidos nas urnas é mais democrática do que a decisão em assembleias com participação popular é, a cada dia, mais indefensável. A política para profissionais da política agoniza em graus variados na maioria dos regimes democráticos liberais. Uma crescente abstenção demonstra de forma devastadora o mal estar da maioria com as instituições do regime de democracia para os monopólios.
Da grandeza de Junho, muito já foi escrito. Pelo menos dois milhões de pessoas, a partir do dia 17 de junho, em quatro centenas de cidades com manifestações de rua de exuberante radicalidade, foi algo magnífico e, totalmente, inusitado no Brasil.
Em primeiro lugar, pela espontaneidade autêntica que só as mobilizações que encontram eco profundo na consciência de milhões pode alcançar. Mas sobre as debilidades de junho não surgiu um consenso na vanguarda ampla que esteve à frente da convocação através das redes sociais na internet. A maior fragilidade de junho é que não deu origem a novas organizações, superiores às existentes. Fortaleceu as existentes, é verdade. Mas não aconteceu um processo qualitativo na reorganização dos movimentos que vem desde 2003/04. O que a história das lutas populares sugere é que sem organização não é possível avançar na luta por um programa.
As Diretas em 1984 tinham os três maiores governos estaduais do Brasil, liderados por Franco Montoro, Leonel Brizola e Tancredo Neves impulsionando a preparação dos comícios, além do PT e uma parcela da Igreja Católica. O Fora Collor foi articulado pela UNE, mas após a explosão da manifestação em São Paulo, dia 11 de agosto de 1992, conseguiu convencer a direção do PT de que era incontornável a saída às ruas, que Lula e Mercadante temiam, porque receosos de serem acusados de golpistas. Quércia, o padrinho de Fleury, esteve no comício do Anhangabaú em setembro de 1992.
Em ambos os processos, os maiores da história política do país, além da esquerda, frações burguesas dissidentes que tinham presença importante no aparelho de Estado, convocaram às ruas. Claro que existiu, também, tanto nas Diretas como no Fora Collor, intensa espontaneidade que correspondia a uma vontade política. Nenhum aparelho político pode colocar, se depender somente de sua influência, milhões de pessoas às ruas. Se não estiver apoiado em um processo objetivo de experiência política que tenha deslocado a consciência média dos trabalhadores e do povo. Tanto em 1984, quanto em 1992 a espontaneidade foi em escala inferior às Jornadas de Junho de 2013. E o peso dos aparatos nas Diretas e no Fora Collor foi, incomparavelmente, maior. Junho, em comparação, foi acéfalo.
Esta acefalia relativa foi expressão da força de Junho, mas também da sua fraqueza. Não existiu organização à altura da mobilização durante as semanas de lutas que Junho abriu. Tampouco depois se conseguiu avançar em organização independente. Se refletirmos em perspectiva histórica, esta debilidade parece significativa. As principais mobilizações políticas do século XX em escala mundial, especialmente as urbanas, conheceram as mais variadas formas de auto-organização desde o início. Em junho nasceram experiências fantásticas de assembleias de ativistas no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e Porto Alegre, mas foram fugazes. Os obstáculos que foram colocados no caminho destas experiências remetem ao debate de estratégia: qual é o caminho para transformar pó Brasil? Como abrir uma via para a revolução brasileira?
O tema da auto-organização sempre foi muito polêmico na esquerda mundial, em função da perspectiva estratégica que as suas diversas componentes alimentavam em relação à democracia e à revolução. Claro que, se as principais forças políticas que são reconhecidas pelas massas como seus porta-vozes, e nas quais os trabalhadores depositam a sua confiança, como o PT, e a CUT, convocam o povo a confiar nas instituições do regime, seja porque elogiam a lisura das eleições, e recomendam paciência até ao próximo sufrágio, seja porque defendem as instituições, os parlamentos, os tribunais, etc… o processo é mais difícil.
A proposta de uma Constituinte Exclusiva por uma reforma política aprovada pelo MST e pelas organizações que se articulam em torno de iniciativas da Consulta Popular, inclusive a esquerda do PT, embora pareça crítica ao governo Dilma, se inscreve, infelizmente, nessa perspectiva diversionista. Diz-se que uma proposta é diversionista, ou seja, cria uma diversão, quando o seu conteúdo desvia a onda de choque da mobilização popular do confronto que ela, originalmente, tinha. Em poucas palavras, o objetivo deste projeto foi, desde o início, afastar o confronto de junho do choque com os governos liderados pelo PT, para poupar Dilma e Hadadd do desgaste.
Não por acaso essa proposta foi articulada, na raiz, dentro do PT e, depois, no Palácio do Planalto. Sua intenção clara era desviar para um beco sem saída um processo de luta que tinha como motor um questionamento que possuía, potencialmente, um conteúdo de classe: para onde deve ir o dinheiro público? Um beco sem saída porque um processo eleitoral para uma Constituinte Exclusiva – uma reforma do regime realizada por dentro do regime – não pode ser feita pelas forças que defendem a atual ordem política e social. Nasceu, portanto, estéril, condenada.
Nessas condições de luta política pós-junho, a desconfiança das massas em relação ao governo avançou muito mais lentamente do que seria possível. Os trabalhadores e a juventude ficaram dependendo, em grande medida, de sua própria experiência para retirar lições sobre as possibilidades de conquistar as mudanças que desejam pelas lutas. Isso porque, não tem sido incomum no Brasil como no Egito da Praça Tahrir, ou na Espanha da Puerta del Sol, uma perda relativa da governabilidade sem que, simultaneamente, tenham sido construídos órgãos de unidade na ação que expressem a nova correlação de forças.
Não obstante, quando as esperanças desmoronam, quando não lhes resta outro caminho senão a sua mobilização, quando se descobrem exasperadas pela impossibilidade de que as instituições resolvam as suas demandas, as massas avançam na construção dos organismos independentes, ou atribuem novas funções às suas organizações pré-existentes.
Esses organismos nascem da urgência de tarefas que não podem ser mais adiadas. Impulsionados pela força das reivindicações mais sentidas, correspondem à necessidade de resolver problemas inadiáveis (desde o abastecimento nos cordões industriais chilenos, por exemplo, até o controle da produção contra o lockout na revolução portuguesa). Por isso, a experiência com a democracia direta, surge como uma resposta das massas ao fracasso da democracia representativa e indireta, e de uma vontade de controlar elas mesmas as decisões que as afetam, assim como de um aprendizado de que é necessário controlar os seus líderes. As massas não procuram a democracia direta e os organismos de auto-organização porque gostem do exercício da políticaSó o fazem quando perderam a esperança de que, por alguma outra forma, possam mudar as suas vidas e conquistar as suas reivindicações. Junho de 2013 foi só um ensaio geral do que ainda está por vir.
Fonte: blog da convergencia